quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

O sentimento de culpa e a repressão à sexualidade feminina.


Seriam esses temas ainda vigentes nos nossos dias?


Antes de adentramos nessa questão, precisamos, antes de qualquer coisa, voltar ao século XIX, para falarmos um pouco da mulher burguesa (o modelo ideal de mulher cultuado à época o qual perdurou por muito tempo no imaginário ocidental).

A dama-lírio (como alguns a chamaram) nutria um profundo sentimento de medo em relação ao desejo ( tanto o desejar como ser desejada. Por isso, estremecia ante a possibilidade de ser invadida por um "olhar sensual" ou mesmo de se envolver em situações nas quais o esteriótipo, concebido pela moral austera (burguesa), sofresse algum tipo de abalo.
Falamos de moral pregada, muitas vezes, não necessariamente seguida. Importante esse ponto: pois sempre haverá um hiato entre o que se prega (moralmente) e o que é realmente seguido.

Era como se a mulher, símbolo da burguesia, não pertencesse a natureza, transformada que foi num ser quase assexuado quando fora das paredes do lar, do sagrado lar burguês. Idealizaram um mulher na qual a sexualidade seria necessariamente associada à procriação e a maternidade.

Uma tentativa de castrar os prazeres femininos quando fugisse ao modelo moral reinante, um modelo imposto pela sociedade pratriarcal, ou seja, na perspectiva do homem (do pater). E diga-se de passagem um homem que exigia uma santidade sexual de sua mulher e povoada os famosos bórdeis europeus.

Para Rouanet era como se a voz da sociedade tentasse asfixiar a voz da natureza (da mulher) que pedia o prazer, mesmo que incoscientemente. Jogavam-se os tigres (da moral) em qualquer expressão de fuga ao modelo mulher-mãe-santa, ou seja, uma tentativa de desvirtuar a própria natureza da mulher (tigres X tigres). A intenção era ao final conter sexualmente a mulher para atender aos valores impostos pela moral burguesa.


Isso gerava uma situação insurportável à mulher. Esconder, reprimir a sua própria natureza para se fazer aceitar pelo meio (a sociedade), ou seja, incorporar um papel forjado por uma cultura notadamente patriarcal (machista), a despeito dos seus sentimentos, emoções e desejos .

Sartre enfatiza-nos esse drama de ser mulher no século XIX: «uma mulher da sociedade burguesa, quando acaba de se comportar como uma fera, deve ser como um anjo». Em outras palavras, depois de representar a “Eva pecaminosa” ou mesmo Lilith, as mulheres do cotidiano imediatamente teriam de se parecer com a Virgem Maria.

Para Rosseau, uma verdadeira esquizofrenia. Corbin, por seu lado, nos faz perceber essa tensão como uma «bipolaridade feminina», que terminou por modelar as figuras de volúpia as quais povoam o imaginário social.



Do ponto de vista religioso, a própria confissão auricular introduzida pela igreja corrobora com esse drama, ao tentar controlar o corpo e os pensamentos da mulher - uma das ferramentas mais eficientes da cultura católica cristã para monitorar a moral sexual feminina. Por isso, especialistas consideram «o século XIX a idade de ouro do sacramento da penitência».

Ora, o confessor tornar-se-ia uma figura quase obsessiva quando se tratava de sexualidade, com implicações importantes na relação culpa cristã e feminino oprimido. Sob essas circunstâncias, esse período histórico se apresentaria como um marco no que se chamaria «sintomas específicos do sofrimento humano» (Alain Corbin)

Não é à toa que Freud, «um positivista que não deixou de usar a sua paixão pela arqueologia à investigação do inconsciente», segundo Maffesoli, sistematizaria os conhecimentos fundadores da teoria da psicanálise a partir de casos de histeria nas mulheres em Viena, segundo seu mais famoso biógrafo, Peter Gay.

A psicanálise começaria, então, a justificar e amenizar a culpabilização dos desejos e das fantasias que provocaram por tanto tempo aflição nas mulheres, apesar de seu apego à racionalidade, típica de seus tempos.

O desejo, dito na linguagem clerical como demoníaco, pois se apresentava como doença a desnaturar a natureza original do homem e contrariar a vontade de Deus, passaria a ser tratado como um algo natural ao ser humano, demasiado humano diria Nietzsche. Um sinal de que a tentação e o desejo não poderiam ser facilmente controlados, melhor, não se tratava de saber-se conter (pela razão) à moda estoica (e também monaquista).

Ulysses, já nos teria ensinado, na Odisséia, ser um estratagema desaconselhável confiar-se na contenção quando nos defrontamos com apelos verdadeiramente fortes aos instintos. Sua certeza em não resistir às sereias, o fez sabiamente tampar os ouvidos de sua tripulação, com cera, e amarrar-se ao mastro do navio. Conhecedor da força da emoção (dos instintos) quanto aguçado pela tentação do canto irresistível das sereias. E mais, estamos a falar de Ulysses, de astúcia e serenidade míticas.


A sexualidade, apesar de deveras reprimida pelo mundo burguês e pela igreja, passaria, a partir da psicanálise, do próprio confessionário e da inquietante preocupação científico-médica com os prazeres do corpo, a ser discutida de forma generalizada. O que era para ser silenciado tornara-se linguagem corrente - um paradoxo não previsto pelo sistema e que Michel Foucault tão bem retrataria.

A igreja, por seu lado, parecia viver alheia a essas descobertas “assustadoras” relacionadas ao sentimento de culpa e a essa opressão cultural no campo da moral sexual.

E continuaria a disseminar a exigência de um porte modesto principalmente através de uma pedagogia inerente às congregações religiosas femininas, a qual pregaria em geral a necessidade: «(...) de se quebrar o ritmo dos impulsos, estancar as fonte de emoção e restringir os assomos de sensualidade. Já que os sentidos seriam semelhantes a portas abertas ao demônio, preciso, pois, ensinar a prudência, instruir a juventude a ocupar as mãos, recear o próprio olhar, saber falar em voz baixa e, melhor ainda, compenetrar-se nas virtudes do silêncio».

É com posturas dessa natureza que o catolicismo reforçaria cada vez mais o modelo angelical - a exaltação à virgindade e o ascenso de um «lirismo da castidade». Um modelo de domesticidade geneticamente ligado ao culto mariano, símbolo de mulher inacessível.

Numa clara revivência do neoplatonismo dos primeiros séculos, segundo Jean Delumeau. (Trecho adaptado do livro: Moral Sexual: a mulher pós-moderna no Confessionário a ser publicado no primeiro trimestre de 2010 por André Agra )

Em que circunstâncias esse modelo ainda se faz presente em nossos tempos?

Um comentário:

  1. Show esse texto! Infelizmente hoje ainda temos retrato do falso moralismo e machismo

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