Falaremos um pouco da aversão à sexualidade (e ao prazer) e do celibato, segundo o cristianismo primitivo e o discurso dos Primeiros Padres. Pretendemos, com isso, identificar certos valores inerentes ao cristianismo emergente os quais influenciariam até hoje os nossos costumes e comportamentos, em particular, a nossa moral sexual.
Primeiro é importante que se diga: o cristianismo por se tornar o centro da devoção religiosa ocidental, passou a ser uma fonte geradora de normas morais. Nesse sentido, a noção de sagrado e profano ficou muito “bem definido", sustentando sua teologia e símbolos a respeito do que seria pecado, do ponto de vista sexual.
Tentemos, pois, contar essa história.
O cristianismo surgiu numa região localizada no Oriente médio, e conhecida como Palestina (o país de Canaã). É ali onde, em meio a uma pequena seita judaica, teria nascido Jesus Cristo, o Messias (um descendente da casa do rei Davi).
Importante destacar que, no início, a pregação dos discípulos de Cristo, também chamados de nazarenos, se baseava em três eixos principais: no «igualitarismo, na assistência social a todos (a caridade) e na salvação post-mortem (depois da morte)». Bem, nos ensina o historiador Paul Veyne.
Mas os nazarenos cultivariam, ainda, a preocupação com a austeridade e a repressão à sexualidade, e exaltavam personagens sociais desprezados na Antiguidade, como as «mulheres sem homens, ou seja, as virgens e as viúvas (Odon Vallet).
A força do cristianismo nascente, entretanto, era restrita, poucos adeptos e muitas perseguições. Só a partir da missão de Paulo, e, posteriormente, com a "conversão" (em 312), de Constantino (Imperador Romano), se inicia, realmente, um processo de ascensão e fortalecimento do cristianismo.
Curioso observar que Constantino antes da "conversão" lutava sob a proteção do Sol Invictus (Mitra). O mitraísmo era a religião mais difundida no império romano à época do nascimento do cristianismo. Sua origem data de 2.000 a . C (na Pérsia).
Apesar de algumas semelhanças entre Mitra e Jesus (nasceram de uma virgem, cearam antes de morrer com seus discípulos e ressuscitaram), Mitra é um deus guerreiro, por isso, talvez, sua popularidade em Roma cuja simbologia se relacionava ao touro, ao sacrifício, ao sangue (não é à toa a paixão dos romanos pela lutas dos gladiadores). Jesus, ao contrário, trazia a mensagem do amor, era o cordeiro (que se deu em sacrifício), o peixe.
Constantino ao trocar, antes de uma batalha, a bandeira de Mitra pela do cristianismo, terminou por tirar a religião dos nazarenos da clandestinidade. Tempos depois, o cristianismo torna-se religião oficial do Império Romano. E Teodósio, em 391, vai mais além, ao proibir os cultos pagãos.
Estaria lançada, assim, uma plataforma para consolidação da Igreja e de seus valores morais. Valores esses que incorporariam muito da cultura pagã (numa espécie de sincretismo moral).
Por isso, não podermos falar em cristianismo puro e nem devemos generalizar o comportamento sexual dos romanos, como é de costume. Em síntese, como já dissemos: Roma não era um templo de prazer sensuais e luxúria sem nenhuma interdição ou tabus.
O que não afasta a possibilidade de apontarmos diferenciações importantes entre o cristianismo e o paganismo, do ponto de vista de moral sexual. Pois essas existiam e eram às vezes bem evidentes.
Cena do seriado Spartacus: sensualidade, nudez e luxúria. Contraste com a austeridade dos cristãos.
Ora, enquanto no círculo dos seguidores de Jesus Cristo haveria uma forte tendência a um controle restritivo do prazer e das sensações relacionadas à carne, bem como o medo com relação à nudez, a renúncia sexual completa para alguns (antecipação do celibato) e uma “severa desaprovação de um segundo casamento.
Entre os cultos pagãos, estaria o conhecido e prestigiado culto a Baco (dioniso), deus do prazer e da sociabilidade. A imagem desse deus se difundiria tanto no império romano dos primeiros séculos que chegaria a superar a de Vênus, deusa do amor e da beleza. O deus das ménades (das bacantes, por isso, o termo bacanal), quase sempre apareceria em meio à embriaguez e com suas adoradoras pouco vestidas e em êxtase (Veyne).
Mas pensemos, mais precisamente, nos primeiros cristãos, reunidos em pequenos grupos nas cidades sob o jugo romano. Uma seita menor no meio do judaísmo, na tentativa de engendrar um processo de construção de sua identidade moral diferenciada.
A teóloga Uta Ranke fala-nos, ainda, do ensinamento de Jesus no sentido de revogar o privilégio do conceito masculino de adultério e de poligamia, uma tentativa de abalar as estruturas pétreas do padrão de dupla-moral. (Dupla-moral: uma moral para os homens e outra para as mulheres, algo ainda observável nos nossos tempos).
De fato, a intenção dos cristãos seria assegurar uma diferença importante em relação aos pagãos, e tentariam isso provavelmente através de uma excepcional disciplina sexual.
Talvez por isso, o entusiasmo moral das comunidades urbanas cristãs e sua vontade em diferenciar-se, tornarem-se mais distintas e coesas em relação ao mundo pagão. Tudo isso se intensificaria com a crença em uma espécie de “fiscalização sagrada”, isto é, um «olhar penetrante de Deus a devassar os recantos da alcova».
Por outro lado, nesse processo de constituição das comunidades primitivas, a vertente feminina seria pouco a pouco sufocada, isso tanto na teologia, como na doutrina e na autoridade da igreja. Maria (a mãe de Jesus) e Madalena, por exemplo, seriam quase “silenciadas” nos Evangelhos Canônicos. E se estabeleceria a autoridade de São Pedro, trazendo a mensagem cristã para o domínio quase exclusivo do Pater (Suely Almeida).
No fundo, um formato de pensamento no qual facilmente poderíamos detectar uma negatividade exaustiva com relação ao prazer sexual e o enfraquecimento do lado feminino nos nazarenos.
Somemos a tudo isso a crença na Parusia. Expliquemos melhor: segundo a filósofa Marilena Chauí, entre os fundamentos dessa antipatia à sexualidade, estaria a crença de que a morte e a ressurreição de Cristo eram sinais de um iminente juízo final. Ocasião em que a imortalidade seria reconquistada. Obviamente seriam dispensáveis as relações sexuais, pois não haveria mais sentido em se perpetuar a espécie humana.
Por consequência, os cristãos tenderiam mais ainda a se afastar de tudo que envolvesse a sexualidade e o sexo, mesmo que fosse para fins procriativos. É nesse sentido que Paulo exaltaria essa escatologia na Primeira Carta aos Coríntios, 7: o tempo já escasseia e os recém-casados devem se concentrar na nova fé e não nas preocupações mundanas (Drury).
Essa tendência de afastamento do prazer (de aversão à carne) ficaria cada vez mais evidente com a influência crescente do gnosticismo e dos neoplatônicos
Os gnósticos (profundamente pessimista com a vida na terra) pregariam «a abstinência do casamento, da carne e do vinho»; e sobre o corpo, diriam: «um túmulo que carregaríamos conosco».
Invadiriam o pensamento cristão com uma radicalização contra a corporeidade e a matéria num nível muito além do pessimismo sexual dos primeiros nazarenos (Ranke). O corpo passaria a se distinguir (e diferenciar muito) do espírito.
Mas não esqueçamos que o rabinato pregava, segundo nos ensina Peter Brown, «o casamento como critério obrigatório de sabedoria», distanciando-se, assim, dessa aversão ao corpo e de sua sexualidade. Muitos veem ai um indício especulativo sobre a possibilidade de um Jesus casado (no caso, com Maria Madalena).
No entanto, «os dirigentes das comunidades cristãs nos séculos I e II, se orientariam em sentido diametralmente oposto» – um sinal, inclusive, de dominação especificamente masculina.
Nesse sentido, a supressão da sexualidade (uma espécie de antecipação do celibato, que se tornou disciplina obrigatória para os sacerdotes, na Igreja Latina, a partir do século XI), significaria um estado de disponibilidade decidida em relação a Deus, para eles: uma espécie de estado ideal.
Essa tendência anti-sexual e anticonjugal, associada a uma hostilidade flagrante ao prazer, levou alguns homens, como forma de se apresentar como modelo vida cristã, a buscarem a castração física (Ranke).
Orígenes, o mais importante teólogo da Igreja grega, teria se castrado aos dezoito anos. E essas castrações voluntárias teriam chegado ao ponto, que o Imperador Adriano, no século II, decretaria a proibição da inusitada prática (Ranke).
Nessa linha, segundo Jean Delumeau, vários Padres da Igreja ao retomar uma longa tradição neoplatônica, perceberiam a união carnal como responsável por rebaixar o homem à condição de animal. Mais ainda: criariam uma vinculação, entre o sexo e a morte.
São Gregório de Niza (330-395 d. C) escreveria: «A procriação é muito mais um princípio de morte do que de vida para os homens, pois a corruptibilidade começa com a geração. Aqueles que com ela romperam, fixaram para si mesmo, pela virgindade um limite para morte. (Apud Chauí)».
Toda essa degradação da sexualidade teria, então, contribuído para a «ascensão da dominação do homem celibatário na Igreja cristã», especialmente com a consolidação da igreja como instituição, a partir do século III. (Peter Brown).
Mas vale dizermos, esse celibato, em sua maioria ligada a uma abstinência sexual dos cônjuges, apresentaria uma peculiaridade curiosa: não se tratava de uma renúncia excessivamente impressionante.
Os homens da Antiguidade consideram a energia sexual como uma substância volátil, rapidamente esgotada nos calores da juventude. As duas realidades da mortalidade numa sociedade antiga asseguram uma reserva permanente de viúvos sérios, disponíveis desde o início da idade madura e livres para se entregar às alegrias mais públicas do cargo clerical».
Todo esse processo de aversão à carne, típica dos padres da igreja, teria tornado o casal cristão «permeável, ao menos em teoria, às sombrias e graves ideias sobre sexualidade elaboradas por Santo Agostinho» com consequências importantes para os séculos vindouros.
Mas a situação ficaria ainda mais radical com relação ao prazer e a sexualidade. Isso de daria com o surgimento de um movimento religioso chamado de monasticismo, um acontecimento importante para a consolidação da moral cristã dos primeiros séculos.
Esses homens «ávidos de perfeição total» se retiravam para o deserto no intuito de vivenciar sua doutrina purista e se afastar do “mundo”, lugar de perdições e distante dos preceitos de Deus, segundo sua visão religiosa.
Continuaremos... (com os monges do deserto e Santo Agostinho)
Obras que serviram de referência: O pecado e o medo no Ocidente, Jean Delumeau; Santo Agostinho, Peter Brown; A história da Vida de Privada, volumes I e II, Paul Veyne; A negação do feminino, Suely Almeida; A história das Mulheres na Antiguidade, Odon Vallet; Eunuco pelo Reino de Deus, Uta Ranke; e outros
Nenhum comentário:
Postar um comentário