Conceitos de Mito
Quando Fernando Pessoa, em seu livro “Mensagem”, exalta o mito como "um nada que é tudo” (Barbosa, 2005), não está apenas poetizando sobre essa faceta primordial da humanidade. Mas expressando, no esplendor de sua maestria, uma intricada e essencial característica do “logos” humano e de sua relação com o transcendente e sua história na terra, seja ela imaginária ou não.
Era como se reconhecesse no “tudo”, talvez intuitivamente, a existência de uma força imanente aos povos e civilizações. Algo responsável pela construção de representações alegóricas e poéticas. Concebidas a partir da capacidade dos povos de assimilação de seu passado remoto, de arquétipos primitivos e de “energias cósmicas” e interiores. Tudo dentro de um arcabouço de religiosidade e de formas de vivência as mais variadas.
O poeta português, nesse momento fascinante de criação, se aproxima do que Bachelard (2006) chamaria de “grande achado”. Situação na qual a “imagem poética pode ser (ou se tornar) o germe de um mundo (...)”.
Importante percebermos que os mitos são contidianamente criados,recriados e cultuados, muitas vezes sem atentarmos para tanto, ex. Matrix (e sua mitologia relacionada). Interessante, a remitificação a qual vivenciamos nos tempos atuais (para muitos os tempos pós-modernos, uma corrente de pensamento que me acosto).
Na pós-modernidade, há uma revificação de mitos antigos, como nova roupagem tecnológica, ex. o filme Avatar (discutiremos os mitos existentes no filme em texto próprio posteriormente).
Para o mestre do estruturalismo, Lévi-Strauss, o mito seria a “porta de acesso privilegiado às leis de funcionamento do inconsciente, sem nenhum tipo de constrangimento: nem mesmo a realidade exterior” (Novaes, 1997) e é ele que garantiria a eficácia simbólica dos ritos.
No mesmo sentido, a função mestra do mito, nos diz Eliade, é “revelar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas”.
Importante ressalvar que o conceito de mito não é exato nem unânime, há quem trate a narrativa mítica como um dado puramente orgânico - com a permissão do exagero, o “nada” do poema de Pessoa. Reflexo da ilusão de mentes que conceberiam seres e situações fantásticas. Sobretudo, advinda de anseios sofredores de um devir, (no sentido post mortem). Ou mesmo, da necessidade de conceição de heróis e suas antíteses com poderes mágicos, os quais satisfariam fantasias e carências psicológicas profundas. Tudo na tentativa de amenizá-las.
Sem adentrar nessa discussão, importa observar a existência de áreas de convergências entre os mitos e suas representações, nas mais diversas culturas. Por exemplo: a conceição de um virgem, com interferência do sobrenatural, está presente no Cristianismo com Maria (Mãe de Jesus). Mas do mesmo modo, na Mitologia Romana com “Silvia Rea” (mãe de Rômulo e Remo). Na mitologia hinduísta com a virgem Devaqui (mãe de Krishna), fecundada pelo “Espírito dos mundos” (Shuré, 1986 - p. 28).
Outro exemplo, é o deus mensageiro, Hermes, que encontra parecença, nas Religiões Afros, com Exu. Figura que sofreu uma substancial deformação do mito originário, e no Brasil erroneamente é tratada como demônio.
O Gênesis, por sinal, repete o mito da criação registrado num texto da mesopotâmia chamado Enuma Elish (Kirsch, 1997 - p. 235). A icnografia de Ísis, arquétipo da deusa mãe, amamentando Hórus (Gadalla, 2003 - p. 83) possivelmente revelaria um ar de frescor e respeito tão profundo para o povo egípcio, como o da Virgem Maria com o menino Jesus no seu colo sagrado, o faz com relação aos Cristãos. Em especial, os Católicos.
Os exemplos são infindos, como se houvesse, no inconsciente coletivo, chaves de compreensão utilizando a força simbólica dos mitos para conferir inteligibilidade ao metafísico (divino).
É nesse sentido, que Danielle Pitta (2005, p. 16) ao comentar o conceito de inconsciente coletivo de Jung, define o mito “como a organização de imagens universais em constelações, em narrações, sob a ação transformadora da situação social – o que implica unidade entre o indivíduo, a espécie e o cosmo”. Decifrá-los, portanto, em linguagem e imagens, é perceber o que toca no âmago dos sentimentos humanos e o faz transcender.
Entretanto, há uma faceta dos mitos que merece ser abordada, e que é fundamental na compreensão do comportamento feminino: trata-se dos efeitos simbólicos gerados a partir de interpretações tradicionais e misóginas das narrativas bíblicas, disseminadas ao longo da história, e que contribuíram na elaboração de um conjunto de representações e simbolismos do ser-mulher, na maioria das vezes degradante, arraigados à sociedade ocidental.
A eficácia simbólica de uma leitura tradicional do mito adâmico
Partindo-se do pressuposto discutido “anter”, de serem os mitos espelhos das relações humanas. Em conseqüência, o seriam, também, no tocante as suas aspirações de poder. A partir disso, poder-se-á especular sobre a sua aproximação e implicação com o processo de dominação e da eficácia simbólica decorrente desse processo.
Nesses moldes, a interpretação mítica pode conter a intencionalidade do poder dominante de impor sua coerção, como se tutelado fosse pelo divino; e com isso geraria representações simbólicas eficazes, disfarçando uma característica “cultural” situado numa determinada época e tornando-a, mediante repetições seguidas, uma espécie de conceito universal ao sabor de interesses e numa perspectiva atemporal, ou seja, consagra-se o efeito simbólico de uma intenção - entranhada na estrutura social - como se a verdade fosse.
Nesses termos e considerando o tema ora em debate, haveria o perigo dessa necessidade de poderes mágicos serem manipulados, e a própria intervenção mágica se tornar inquestionável, p.ex., a leitura e interpretação dos textos bíblicos, de forma literal, sendo estes textos sagrados, por isso, irretocáveis, se apresentariam acima de questionamentos, como se fossem imaculados, daí, inclusive, sua poderosa eficácia simbólica.
Ao se falar em eficácia simbólica nos termos de cura através de uma crença em um ente superior-metafísico, em geral, e por intermédio de seus rituais, se processaria uma mudança atestável no corpo (orgânico) do indivíduo curado, o que ocorre comumente em cultos de candomblé, nos neopentecontais e mesmo nos carismáticos, isso naturalmente, quando esses rituais não são utilizados como substitutos radicais das intervenções médico-científicas, situações na quais os efeitos podem ser de natureza devastadora aos paciente, assim parece. Mas aqui estar-se-á tratando, em tese, de efeitos simbólicos de resultados positivos.
Todavia, a proposta dessa breve discussão diz respeito aos efeitos simbólicos danosos para o gênero feminino e, doravante, para sociedade como um todo.
As civilizações enraizadas na religião hebraica trazem em seu arcabouço um traço cultural marcante, o “patriarcalismo”, sendo um dos seus pilares fundamentais.
Os mitos de criação presentes no Velho Testamento, alicerces precípuos do Cristianismo, do Judaísmo e do Islamismo são intensamente identificados com a força do poder patriarcal.
Essa força alimentada pela repetição incansável das leituras míticas, ao longo dos tempos, adquiriu uma eficácia simbólica impressionante, e criou um estigma perigoso para o feminino.
Dentre esses mitos fundantes, encontra-se o “Adâmico”, inserido no Gênesis, primeiro livro do Pentateuco, supostamente escrito por Moisés. E este está repleto de afirmações de “preponderância” de gênero, suscitando um desequilíbrio imperioso da condição da mulher perante o homem, isso, naturalmente, sob os auspícios da leitura tradicional judaico-cristã.
A criação da “primeira mulher”, vide Gênesis (2, 22) – “E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem” - é a partir da costela de Adão, como alguns popularmente alcunham de “órgão torto”, sugerindo a inclinação desta para o mal. Corrobora com essa sugestão uma das teses centrais do “Malleus Maleficarum” - “porque Eva nasceu de uma costela torta de Adão, portanto nenhuma mulher poder ser reta (I,6)” (Muraro, 2002 – p.15), circunstância vivida na mitologia grega por Pandora, a primeira mulher, usada como instrumento de vingança por Zeus.
Adão e Eva
Mais à frente, em Gênesis (3, 1), transcrito abaixo, há o primeiro contato com a serpente - no mito, uma figura criada por Javé - dito por muitos Cristãos a representação do “demônio”, mas que representa o intelecto na Mitologia Egípcia (Gadalla, 2003 – p. 43) e, consoante Pitta (2005 - p.35), é, também, um símbolo associado ao falo, em conseqüência, à fertilidade (“simbolismo ofidiano”).
Gênesis 3, 1 - Ora, a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o SENHOR Deus tinha feito. E esta disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda a árvore do jardim?
Porém, esse contato é feito pela mulher, aludindo-se, por “vias tortas”, ser ela mais propensa a se entregar às tentações. Em seguida, ao ceder, confirmaria a ironia wildeana com relação à tentação , no caso do poeta e escritos irlandês, sem distinção de gênero; e ainda leva Adão para a “perdição”, i. é, acessa a “árvore do bem e do mal”, a “árvore do conhecimento”.
Gênesis 3,6 - E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido , e ele comeu com ela.
Não esquecer que a partir de então, os olhos do homem e da mulher foram abertos para o conhecimento, e aí, interessante observar, surge o pudor para com o corpo, vide Gênesis (3,7), outro marcante elemento gerador do sentimento de culpa da mulher, manipulado a fim de sofisticar o processo de dominação. O corpo passa a ser o receptáculo natural dos desejos e tentações.
Gênesis (3,7) - Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus ; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais.
Não é difícil, pois, captar o efeito simbólico da tradição cristã primitiva ao desenvolver “uma atitude de imputação de culpa à mulher pela entrada do mal ou do pecado na história humana”. E esse mal fica relacionado à sexualidade, segundo essa tradição, como “uma transgressão a um estado de inocência primitiva”. Daí advir o pecado original da relação sexual (Gebara, 1994 - p. 41).
No diálogo que se segue, há um espanto de Deus com a vergonha que agora a nudez causa em Adão (Gênesis 3,10), e, então, Deus indaga-lhe: Quem te mostrou que estavas nu? Comeste tu da árvore de que te ordenei que não comesses? (Gênesis 3,11). Nota-se Adão, por conseguinte, a culpabilizar a mulher pelo “desvio”: A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi . (Gênesis 3,12).
Com efeito, a “ira” de Deus se abate sobre os dois, mas, os versículos que se seguem não deixam de induzir a compreensão de que a mulher além de culpada passa a ser subjugada, e a ela é relegado um papel secundário na história. Gênesis (3,16) assim afirma: multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará .; e (Gênesis 3,17): E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, (...), maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida; falam por si só.
Como se vê, coube à mulher, na figura de Eva, a “pior parte”, a de carregar nos ombros a “pusilanimidade” de ter cedido à serpente. Difícil, ante a interpretação literal , fugir dessa carga mítica, simbólica, enraizada no consciente coletivo.
É essa “suspeita” lançada sobre o gênero feminino através dos simbolismos distorcidos desses mitos, que ainda perdura ao tempo hodierno por sua intensa eficácia simbólica, uma “letra escarlate” a vagar no imaginário de uma sociedade ainda patriarcal.
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