terça-feira, 2 de março de 2010

O kite surf e o windsurf: o prazer de voar...



A nossa proposta de discussão pretende nos levar a uma espécie de reinado da imaginação. Nesse sentido, tentaremos compreender, um pouco que seja, essa paixão contagiante e inesgotável que é velejar de kitesurf e windsurf (ou mesmo de outras embarcações à vela; não esqueçamos os argonautas).

Pergunta-se: o que estaria por trás desse despertar de tantas emoções e experiências fascinantes pela quais os praticantes desses esportes são cotidianamente tomados?

Para tentar nos aproximar melhor do tema, escolhemos três aspectos sintomáticos desses esportes, bem destacáveis e comuns, os quais nos servirão de base para iniciarmos a nossa conversa (que não se esgotará nesse breve bate-papo). Mas vamos em frente:


foto site kitesurf floripa

1) Poder contagiante do esporte: a coisa é tão forte que, como dizem, depois que o "gosto pega", nada surpreende o esforço de cada um em ir ao mar e zarpar em seu conjunto encantado.

Nesse sentido, não é incomum se observar praticantes buscando se "afastar" (ou com uma imensa vontade de fazê-lo) de sua vida cotidiana, inclusive no horário de seus afazeres (ex. quantos não olham da janela do escritório às árvores para verificar se o vento dá, morrendo de vontade de cair na água). E não critiquem precipitadamente, pois os mais responsáveis caem à tentação num piscar de olhos.

2) Emoções compartilhadas : vejam uma roda de kitesurfista ou windsurfistas conversando. Para quem não é do ramo muitas vezes a conversa pode se tornar até enfadonha. Mas para quem está realmente envolvido, somos tomado (ou sugado) por uma espécie de rede de afetos, de compartilhamentos e de emoções irresistíveis - algo típico das tribos contemporâneas.

3) Efeito tranquilizador (da mente, do espírito): convém ainda citar o efeito entorpecente do velejo (e do pós-velejo), parece que o corpo e a mente descansam de nossa vida "real". Como se tivéssemos entrado numa esfera de interação com um cosmo de extremo prazer.

Falemos, então, a partir desses três "sintomas" dos velejadores.

Pois bem. Primeiramente, é bom não se desprezar que o kite surf e o windsurf, como muitos outros esportes de vela, nos permitem vivenciar o antigo sonho de voar, de ascender ao alto.

Deslizamos nas ondas em voo razante, deixando na água cristalina um rastro de indescritível coloração. E mais: de repente, alçamo-nos rumo aos céus (o sonho de Ícaro), desafiando a gravidade com o auxílio das asas (dos equipamentos) e do sopro de Éolo (deus do vento) ou para o hinduísmo, Vayu ("o sopro da vida").


Por isso, para lidar com as imagens criadas num simples velejo (imagens poéticas, diríamos), nos seduz trilhar por um caminho distanciado das explicações meramente racionais. É difícil examinar os quatro sintomas citados sob um ponto de vista estritamente lógico.

Pois essa perspectiva (lógica-racional) não é, ao nosso ver, suficiente para abarcar o fenômeno (velejar) na sua integralidade. Em função desse pressuposto, escolhemos tentar nos aproximar desse fenômeno pela via do imaginário.

Mas o que queremos dizer com via do imaginário. Grosso modo, é tentarmos compreender o fenômeno velejar sob a ótica de esquemas de imagens primitivas que estruturam o pensamento e precedem nossas ideias e emoções (ex. não nascemos com a mente totalmente limpa, acredito).

Expliquemos melhor. Ao velejarmos (kite e wind), tanto do ponto de vista da atitute como da estética envolvida nos deparamos com um conjunto de imagens variadas. Podemos citar algumas: o mar, a força do vento na água, nas velas, o céu, o desenho dos equipamentos (percebam a semelhança da vela do wind com uma asa ou de algumas pipas com um passáro), e muito mais. Prestem atenção nesse aspecto: pois essas imagens são referências de mitos muito antigos.

A teoria do imaginário demonstra que esse conjunto de imagens nos faz reviver antigas experiências da humanidade, experiências marcantes, por sinal. Por isso, foram transformados em epopeias, contos, lendas.

Muitas delas, inclusive, fartamente presentes em mitos formadores da civilização ocidental e outras que nos precederam, ou seja, são constelações de imagens inerentes ao nosso mais profundo reservatório imaginativo, de onde nascem muitas crenças e experiência místicas.

Enfatizemos esse ponto (é necessário): imagens arquetípicas, melhor dizendo: imagens primordiais advindas de tempos distantes que pouco a pouco foram se firmando numa espécie de consciência coletiva da humanidade. E que despertaram nos nossos antepassados (e despertam em nós) desde sentimentos de espanto e medo, admiração, sensação de transcendência até desafios aos inúmeros feitos heroicos de que temos notícia.

Vejam que as asas aparecem como atributos de muitos deuses e personagens mitológicos. Em Eros (deus do amor), nos anjos, em Ísis (na mitologia egípcia), no capacete de Thor (mitologia nórdica), nos pés de Hermes, em Perseu ...... paremos para não ficar cansativa a citação.

Mas voltemos à nossa trilha. Para os pensadores da teoria do imaginário , o salto rumo ao alto (como se faz no kite e no wind)é um gesto (ou uma fantasia) de potência, de transcendência, de purificação. Uma espécie de libertação do mundo em que vivemos.

Vários outros símbolos lhes são correlatos: as escadas; o "xamã estende as mãos como um pássaro abre asas"; o subir as montanhas, as pirâmides apontando para o céu; as colunas das catedrais góticas; os minaretes das mesquitas islâmicas; todos se voltam para o alto.

A ascensão ao céu por uma escada é conhecida no antigo Egito, na África, na Oceania e na América do Norte. Ascensão que pode ser feita por uma montanha (símbolo da divindade celeste suprema), por uma árvore (o carvalho inclusive é símbolo de Júpiter), pelo arco-íris (como no Havaí).


Dante, na Divina Comédia, fala "de uma escada de ouro para se chegar ao último céu". São João da Cruz e a sua subida mística ao Monte Carmelo; "Jacó sonha com uma escada cujo topo atinge o Céu", ou seja, há uma farta miríade de mitos de sacralização da subida aos céus.

Vejam que estamos tentando demonstrar a mitificação que envolve o elevar-se aos céus, uma imagem que abarca, nos parece, a vontade de subir (voar) vivenciada no kitesurf e no windsurf às regiões superiores saturadas de sagrado, de valores mítico-religiosos



Por isso a importância de focarmos em símbolos como nas asas (a pipa e a vela podem ser consideradas, sob nosso ângulo de visão, verdadeiras asas). Há pipas inclusive que tentam imitar o formato de pássaros. Não esqueçamos a fênix (da mitologia egípcia e grega)ou a águia (símbolo dos romanos e dos americanos, dois povos, duas potências imperialistas); na mitologia hinduista temos o rei dos pássaros, Garuda.

Outra estrutura imagética importante é a água. Quem não se impressiona com o prateado do mar. O espelho que se forma na superfície da água no qual flutuamos (voamos) com nossas pranchas. Notem que esse prateado ou dourado da água são representativos de lugares celestes, pelo menos na visão de muitas religiões e culturas, as mais distintas.

Experimentem velejar ao final da tarde e percebam a superfície do mar em sua volta, dá uma sensação de contato com algo transcendente, com algo celestial. E o velejo para muitos horizontal não esconde sua intenção de planar, de ascender.

Por outro lado, é preciso adequar-se ao ambiente. A mansidão do mar é passageira e os ventos são enganosos. Num caso e no outro, temos que conciliar as ondas (animação mais íntima das águas), com o vento e as asas (o equipamento). E tudo isso em harmonia com o nosso corpo e seus movimentos.

Talvez fosse mais adequado falarmos em termos de cativar e negociar com a natureza (mar, ventos, fauna, flora marinha) para melhor traduzir o que seria velejar. Para alguns mais impetuosos (ou muito senhores de si) adotam uma postura de dominar o mar (o que também é um símbolo importante).


É bom notar que essa metáfora de domar o mar se assemelha tanto ao controlar os nossos instintos como ao controlar a fúria da natureza. Situações presentes em muitos feitos heroicos, de religiosos e guerreiros, bem nos exemplifica as figuras de Moisés, Netuno, Ulysses, Aquiles...

A água tem ainda toda uma relação com a emotividade e com um sentimento de pertencer a um todo orgânico. Não nos esquecamos que provavelmente viemos da água e que nosso primeiro berço e nossa paz primeira foi no útero, ambiente aquoso e misterioso, como o mar.

A aproximação do mar (como símbolo) ao útero materno é recorrente à psicanálise, bem como, nas mitologias clássicas, o é à ideia de fecundidade feminina.

Inúmeras são as divindades e seres relacionados ao mar: Iemanjá (mitologia africana); Netuno; as sereias; Varuna (mitologia Hindu); Jesus (caminhou sobre as águas, na mitologia cristã).

Não esqueçamos que o batismo é feito com (na) água, inclusive o de Jesus, por João Batista. Para o Cristianismo, o batismo tornou-se o principal instrumento de regeneração espiritual. A imersão na água simboliza o regresso, um novo nascimento.

Mas o ritual do banho também era praticado no culto das grandes deusas da fecundidade e da agricultura. Os sacerdotes védicos suplicavam: que as águas nos tragam o bem-estar.

Talvez, seja essa interação com esses sonhos e êxtases antigos que nos façam amar tanto o velejo....Pois nos conectamos com a memória da humanidade no que há de mais sagrado e perene.

Continuaremos com essa nossa viagem em outra momento..., mas antes de terminarmos, escutemos Fernando Pessoa:

Nas asas do tempo, a tristeza voa


Refer. básc. (Gilbert Durand, Michel Maffesoli, Mircea Eliade)

4 comentários:

  1. Muito boa essa sua viagem pelos mitos para interpretar o velejo (deu vontade de fazer kite), parabéns.

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  2. excelente!!! MAS COMO VELEJADOR!! incluiria todas embarcaçoes a vela, lembrei enquanto lia de longas travessias sem avistar terra!!! PARABENS!

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  3. Simplesmente, acabei de Kitesurfar ao ler esse artigo. Mesmo sem ser um praticante do Kite Surf acabei viajando nesse mundo de liberdade e de contato pleno com a natureza. Hériko Lucena

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  4. Momento de grande lucides André ao relacionar o velejo com os nossos arquetipos, todavia, eu incluiria o surf, o mergulho e voar de aza delta no universo das oportunidades de vivenciar algo realmente transcendental. Parabens e continue espalhando o seu pençamento, o mundo precisa dessa partilha.
    Ronaldo Moura

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