Nossa jornada se inicia na Antiguidade. Expliquemos: A construção da moral sexual (referência à mulher ocidental) foi muito influenciada pelo cristianismo, especialmente pelo pensamento de S. Agostinho e de S. Tomas de Aquino. Mas, além disso, a moral cristã e seus pensadores receberam contribuições importantes do paganismo (inclusive dos seus mitos) e do helenismo (princialmente das correntes filosóficas do mundo greco-romano).
Como exemplo, poderíamos citar: o estoicismo (muito associado à austeridade, ao controle de si) e o neoplatonismo (relac. à idealização e a dualidade corpo/espírito). Plotino, um dos principais pensadores neoplatônicos, nutria uma verdadeira ojeriza ao corpo, para ele uma fonte do mal. Uma visão de certa forma assimilada pelo cristianismo.
Por isso, a necessidade de voltarmos no tempo. Pois sem esse passado é difícil compreender a realidade da moral sexual hoje vivenciada, por mais incrível que pareça.
Pois bem. Nosso primeiro tema é discutir um pouco uma impressão bastante difundida de uma Roma na qual o prazer sexual era desenfreado e generalizado. Essa é uma tese usado por muito tempo por pensadores cristãos.
Para eles, haveria em Roma uma liberalidade e licenciosidade generalizada de comportamentos, como se o Império Romano tivesse sido uma grande Sodoma e Gomorra.
Portanto, seria supostamente equivocado generalizar-se o comportamento sexual dos romanos. O que não significa dizer que em Roma não se celebrava a vida e o prazer. Isso era bem evidente nas saturnais, espécie de carnaval romano, e nos famosos cultos a Baco, deus do vinho e das orgias (bacanal, inclusive, deriva da palavra bacante, seguidoras de Baco).
Quando, por exemplo, o historiador Paul Veyne equipara a liberdade de costumes da aristocracia romana e de algumas de suas damas à do século XVIII, devemos ressalvar que essa mesma liberdade não seria observada amplamente nas camadas mais pobres de Roma. E mesmo nas altas classes romanas havia aristocratas austeros quando se tratava de conduta sexual (ex. Marcos Aurélio).
Ora, não podemos cair na tentação de imaginarmos toda dama romana como uma Messalina (um ícone da sexualidade desenfreada de Roma) nem todo imperador um Calígula. Além do mais, a austeridade estoica tinha sua permeabilidade nas classes altas romanas, o que configura um indicativo da presença de controle sexual.
A consagrada teóloga Uta Ranke nos chamaria atenção para esse exagero, segundo a qual se imaginaria Roma um grande templo de homens e mulheres a se deliciarem com os prazeres da vida, inclusive os do corpo. Uma versão distorcida que induziria a se pensar o cristianismo como um precursor do autocontrole e do ascetismo no mundo pagão.
Aqui cabe mais uma ressalva. Quando se aborda a questão do pessimismo sexual existente na Antiguidade, é bom lembrarmos que essa noção não derivaria do conceito de pecado ou de punição, mas, em geral, de aconselhamentos (médicos) no tocante à abstinência sexual, à virgindade e à fuga do prazer excessivo, como bem nos argumenta Michel Foucault.
Outro tema importante é o famoso padrão de dupla-moral (uma moral para os homens e outra para as mulheres) herdado do helenismo e arraigado na cultura pagã, a despeito de algumas conquistas das mulheres romanas (para alguns historiadores as primeiras feministas).
No próprio discurso médico podemos encontrar resquícios de uma distinção profunda dessa dupla-moral. Celso e Rufo de Éfeso, médicos famosos da sociedade romana, discerniam a epilepsia como uma doença autocurável, bastava se chegar a puberdade para se realizar a cura.
Nas meninas, ela se daria com a primeira menarca (menstruação). E os meninos, quando fizessem amor pela primeira vez. Em resumo, a puberdade estaria associada à iniciação sexual para os meninos ao passo que para as meninas a «virgindade continuaria sacrossanta» (Paul Veyne)).
Diria-nos Michele Perrot «Roma, pagã ou cristã, exigiria a virgindade das raparigas (moças), e celebraria o pudor e a castidade das mulheres», ou seja, a cultura pagã também valorizaria a contenção sexual das mulheres e a virgindade.
Ao contrário, a situação dos meninos seria bem diferente, pois eles gozariam de indulgência para aproveitarem a vida, em particular, entre o surgimento da puberdade e o casamento. Cícero e Juvenal, «moralistas severos», e o imperador Cláudio (cônjuge de Messalina), admitiam a necessidade de se «conceder calor à juventude».
Segundo ainda o historiador francês: «Durante cinco ou dez anos, o jovem frequentava prostitutas, tomava amantes; e comum, um grupo de adolescentes, forçar a porta de uma mulher da vida para uma violação coletiva».
No fundo, a virilidade, a força e o gládio impondo a violência à mulher.
Quanto ao casamento em si, para os romanos um fato adstrito, em geral, à esfera do particular (do privado) e uma instituição relacionada mais a um «dever cívico» com fins de procriação. Haveria ainda a perspectiva de se adotar o casamento monogâmico (com raízes estoicas), na visão de Michel Foucault, uma exigência não presente no mundo romano mais antigo - pelos menos com tanta contundência .
Por outro lado, no contexto da moral do primeiro século, a mulher seria percebida como uma companheira, e não um mero objeto patrimonial do marido, não obstante, ser comum considerá-la de inferioridade natural (uma visão herdada do aristotelismo e incorporada por muito tempo pelo pensamento misógino de muitos pensadores cristãos).
Por isso, quando o romano preconizava o respeito do marido pela esposa seria mais no sentido de como deve se portar um verdadeiro chefe, ao respeitar «seus auxiliares devotados, que são seus amigos inferiores». Nesses termos, as romanas poderiam até ser mais valorizadas que as gregas, mas ainda sim, seriam consideradas como diria Aristóteles: “um ser de segunda ordem ".
Sobre a infidelidade feminina (da esposa), a moral romana não condenaria o fato por si só, i. é, o ato não significaria um «amor traído». Mas a condenação no sentido do esposo - seu senhor absoluto, como o seria dos filhos e dos domésticos - não a ter vigiado adequadamente.
Seria uma questão, assim nos parece, mas de aparência e demonstração de boa governança do esposo do que de sentimentalidade pela atitude da companheira. Em decorrência disso e considerando-se que os maridos iludidos seriam mais ultrajados do que ridicularizados, haveria nas classes altas uma incidência elevada de divórcios; «César, Cícero, Ovídio, Cláudio, por exemplo, teriam casado três vezes».
Quanto à possibilidade usual da prática do divórcio, sob os auspícios do direito, por exemplo, bastaria para mulher como para o marido se afastarem com essa intenção e a informalidade consagraria o ato. Não seria sequer necessário prevenir o ex-cônjuge, e teria ocorrido casos em Roma de maridos divorciados de sua única esposa sem o saberem.
Outra característica ponderável da moral sexual praticada nesses tempos seria a tentativa de levar a castidade aos esposos, uma moral conjugal com afinidades com o estoicismo e presente no ideário cristão. Marcos Aurélio – imperador estoico - diria ser o adultério do marido tão grave quanto o da mulher, «ao contrário da velha moral que julgava as falhas não segundo o ideal moral, e sim de acordo com a realidade cívica, na qual se inscrevia o privilégio dos machos».
Entretanto, é de se levar em conta que uma moral não se restringe ao que se prega, ao dever ser, mas, sobretudo, a assimilação e prática dessas regras no cotidiano das pessoas. Nesse sentido, essa moral conjugal pregada pelos estoicos e pelo cristianismo, com algumas similitudes notáveis, não se realizaria de forma importante na sociedade, em especial, quando atentasse contra a força patriarcal de ares quase inquebrantável.
É importante ressaltarmos que os soberanos romanos, diria Maurice Pinguet, diferentemente de seus homólogos chineses e japoneses, não teriam o «velho hábito confuciano de medir o poder em proporção à ordem moral».
Claro que haveria exceções, entre elas: Augustos, Domiciano, Severo e o próprio Constantino. Estes imperadores teriam tentado corrigir os costumes por meio de decretos. Domiciano, por exemplo, teria mandado ainda enterrar viva uma vestal que descumprira seu voto de castidade, e proibira os poetas satíricos de usar termos obscenos. As vestais eram sacerdotisas virgens (deusa romana Vesta ou Héstia) as quais mantinham aceso o fogo sagrado - símbolo da verdadeira alma de Roma.
Severo, de outro modo, faria «do adultério do marido um delito e do aborto um crime contra o esposo e a pátria»; a legislação de Constantino substituiria «por um rigorismo mais popular que verdadeiramente cristão o velho laxismo aristocrático».
Todavia, essas tentativas sempre deixariam de ser aplicadas e seriam esquecidas no reinado seguinte; somente a de Constantino se conservaria e marcaria a Idade Média. Como podemos perceber, a sociedade romana viveria, grosso modo, entre o prazer e a contenção, a depender do governo, das circunstâncias e da classe social.
Ora, do mesmo jeito que se cultuaria a figura de Baco ou de afrodite, esculturas como as de Apolo e Hércules também seriam exaltadas. No fundo, elas seriam chaves de compreensão do comportamento dos romanos.
A primeira relacionada às delícias da vida. As outras à força, ao controle, à razão. O próprio ideal apolíneo seria feito de autocensura. Todavia, algo bem diferente de ameaçar-se alguém com a condenação eterna. Em resumo, poderíamos dizer: haveria regras a serem seguidas e interdições a serem respeitadas mesmo nas situações de luxúria deflagrada.
Curioso que os romanos reconheciam nessa época, por exemplo, um libertino quando este fazia amor antes do cair da noite (exceto os recém-casados); «fazer amor sem criar penumbra»; ou despirem-se todas as vestes de sua parceira. Só as prostitutas amavam sem sutiã. Já nas pinturas dos bordéis de Pompéia, as damas da noite conservariam esse último véu, como um sinal de distinção.
Oportuno enfatizarmos a necessidade da mulher estar sempre a servir ao homem e se posicionar de forma passiva. Ser ativo «seria uma atitude do macho».
Com efeito, haveria duas infâmias supremas para os romanos: uma seria o macho ser servil a ponto de levar a boca a serviço da mulher, a outra seria um homem livre ser passivo numa relação sexual, ou seja, deixar-se possuir. Assim, um cidadão romano poderia ter relações com outros homens, inclusive com seus escravos, ou mesmo com meninos (pederastia), desde que se comportasse como ativo.
As classes superiores, por seu lado, procurariam diferenciar-se das mais inferiores por sua cultura e vida moral, entre outros, como se quisessem criar uma distância social através do seu código de conduta moral. Mesmo o amor homossexual não seria tão diferenciado do amor heterossexual; pois o prazer sexual, enquanto tal, não colocaria nenhum problema para o moralista da classe superior.
Todavia, «o medo da efeminização e da dependência emocional», esse sim, importaria e fundamentaria a necessidade de se «manter a imagem pública de um homem realmente integrado à classe superior», pois não estaria em jogo o escrúpulo relativo à sexualidade em si, mas uma condição que pudesse sugerir inferioridade, dependência. Tudo isso determinaria “o código moral e a vida sexual da maioria dos notáveis de Roma”.
Quanto à mulher, é emblemático o caso de Teodora, a esposa juvenil de Justiniano e uma ex-dançarina de strep-tease do Teatro Público de Constantinopla. Tratava-se de uma mulher do povo, e as restrições morais dos códigos das classes superiores não lhe diziam respeito. Sob todos os aspectos, Teodora, em sua época, poderia ser considerada a ‘antítese das respeitáveis mulheres casadas da classe superior’, bem nos ensina Peter Brown.
É de se comentar a questão relativa à nudez feminina e sua relação com o pudor, um atributo que se fará presente em toda história do cristianismo, em especial na sua tradição católica. Sob esse prisma, se haveria, por um lado, uma indiferença, grosso modo, com relação à nudez na vida pública romana, não era de se desprezar a vergonha social de uma mulher de se exibir em público de «modo inconveniente».
Sintomático à época a indiferença com a nudez das damas diante dos escravos, pois moralmente essa presença seria tão insignificante quanto está diante de um animal ou um objeto (Servus est res (servo és coisa).
Continuaremos....
Obras ref.: História da Vida Privada, volumes I,II,III, IV e V; O pecado e o medo no Ocidente; Eunucos pelo Reino de Deus (e outras).
Trecho adaptado do livro: Moral sexual: a mulher pós-moderna no confessionário, a ser publicado em breve por André Agra.
Gostei muito....Amei...
ResponderExcluirMaravilhoso texto!!! Parabens André!!
ResponderExcluirQue texto gostoso de ler...Pensei que era grande demais, mas cheguei no final com gosto de quero mais, valeu, valeu, valeu
ResponderExcluirParabéns! Está muito bem feito. Excelente os textos.
ResponderExcluirSugestão: um resumo de cada texto e lynk para quem quiser ler na totalidade.
Delmiro Maia
(Comentário enviado por e-mail)
Nota: mande seu endereço que lhe enviarei meu livro Duas Vidas Duas Missões.
Você merece André. Parabéns. Seu Blog está belíssimo. Lindo texto. Quero estar presente no lançamento do seu livro. Não me esqueça.
ResponderExcluirBeijos,
Fátima Carvalho.
Oi Andre,estou acompanhando o seu blog (Tempos do Imaginario) estou adorando e recomendando,muito interessante mesmo. Bjos.
ResponderExcluirComentário enviado por e-mail (Maria José Rudgley, Inglaterra)
Carolina Cabral: Rapaz, que maravilha!!! Parabéns. Outro dia dei uma olhada nele e achei super interessante. Sucesso. Bj.
ResponderExcluirCaro iluminado da C.E André.
ResponderExcluirA busca da essência significa amor, justiça e imparcialidade. Aborde sempre as situações que traduzem informações e sentimentos de todos sempre vigilante com opiniões que podem ser contundentes na visão de algúns. De mais, amigo, poucos blogs possuem a qualidade dissertativa, visual e espiritual como o seu. Se falta algo?? Sim, falta!!! Não pare nunca, pois não sabes o bem que faz para os seus....
Tríplice e fraternal abraço para tí
Machado Filho.'. (João Filho)
muito interesante
ResponderExcluir