segunda-feira, 5 de abril de 2010

A "mulher pós-moderna", a moral sexual e os mitos contemporâneos



Os tempos atuais trazem à tona uma boa discussão em torno do que é a “mulher pós-moderna” e quais são os seus valores (ou novos valores) em termos de moral sexual.

Primeiro é importante que se diga: uma das principais revoluções do século XX, em especial, na sua segunda metade, foi a mudança nos papéis sociais da mulher (um processo ainda em andamento no século XXI), segundo bem nos ensina o historiador britânico Eric Hobsbawm.
E nesse efervescente processo cultural se pode observar um vigoroso (re)nascimento do culto ao prazer e uma valorização excessiva do corpo e sua erotização (o “hedonismo contemporâneo”). Era como se voltássemos "todas" as nossas atenções para o "viver na pele a vida”, com todas as suas oportunidades. Inclusive sexuais.

Falamos em (re)nascimento, pois “cultuar o corpo” não é uma inovação de nossos tempos. Os gregos, na Antiguidade, também cultuavam ao seu modo o “corpo” e o “belo”. Da mesma maneira, a sensualidade erótica foi também marcante em vários momentos de nossa história ocidental.
Na Atenas Clássica, nos debates filosóficos, o belo, o corpo e o amor eram temas recorrentes. O banquete de Platão fala bem desses aspectos na Antiguidade.

Na Roma renascentista, por exemplo, segundo G. Chastenet, na época dos Bórgias, a “cidade santa” foi palco de famosas orgias sexuais patrocinados, inclusive, pelo Papa Alexandre VI (O Papa Bórgias). Notem que a Igreja (com o Concílio de Trento) tentou combater esses “excessos“ morais do clero e criou um rigoroso código moral para o catolicismo.

Pois bem. É em meio a toda essa "hedonização" massificada, que vivenciamos a recriação, em imagem e valores, dessa “nova mulher”. Uma “nova Eva” poderíamos dizer. Mas uma Eva que não aceita mais a alcunha depreciativa de “pecaminosa”. Por isso, bem mais liberta, e sem tanta culpa (sexual) a lhe atormentar. Talvez até uma “Eva” com traços da lendária Lilith.
Expliquemos melhor: Lilith, segundo antigas tradições orais judaicas, teria sido a primeira mulher de Adão (antes de Eva). Mas por ter exigido “direitos” iguais a Adão (inclusive, copular por cima), se rebelou e abandonou o Paraíso. Deus enviou anjos para trazê-la de volta, mas Lilith negou-se atender o “pedido” divino. Mais tarde, a tradição cristã a transformou em demônio (Sucubus), especialmente na Idade Média. Nas décadas de 60 e 70 torna-se símbolo dos movimentos feministas. A iconografia de Lilith (A lua Negra) está associada aos cabelos longos, à noite, à natureza insubmissa .
Notem, por outro lado, que a pós-modernidade é mensageira de uma imensa valorização do sentir (do toque, do contato carnal, do viver o momento, da “comunhão de afetos”).

No fundo, seus valores estão embebidos com o vinho de Dionisio, por isso toda sua emotividade e aproximação com o "Eros carnal". Obviamente, em detrimento ao "refletir", característico da Era Moderna e do deus grego Apolo (que é quase sempre associado ao pensar reflexivo, ao guardar-se, à contenção do prazer, ao equilíbrio).

Vejam que ao falarmos, sob uma forma simbólica (usando os mitos), estamos tentando demonstrar fortes sentimentos e sensações, presentes nas nossas mentes e no "inconsciente coletivo", que, no passado, foram divinizados.

E que têm uma profunda ligação com a moral sexual feminina dos nossos dias (que também "diviniza" suas crenças, valores e cria seus mitos).

 
Fig - As ninfas dominam o Sátyro (símbolo da sexualidade) e usam-no à vontade. Uma boa metáfora para expressar a liberdade sexual conquista pelas mulheres na pós-modernidade.
Fig - O próprio deus Dionisio (Baco) apresenta traços masculinos e femininos. E é símbolo da antítese: emoção versus contenção (razão). Ora, pensar em termos dessa "onda do sentir", também é perceber uma profusão de imagens e cores que inundam o nosso cotidiano (os shoppings centers são bons exemplos disso).
As "imagens" parecem avançar sobre o nosso corpo (interferindo inclusive em nosso discernimento), tomando-nos de assalto.
E essa "multicoloração" parece estar "ligada diretamente às simbologias femininas, à valorização positiva da mulher, às constelações noturnas, da natureza e da fecundidade”. Como defende com maestria o francês G. Durand (um dos pais da Teoria do Imaginário. E isso nos interessa muito.

 
Era como se o véu de Isis e de Mâyâ começassem a cobrir a sociedade ocidental, numa espécie de “feminização do ocidente”. (Uma amiga, Érica, disse-me essa semana: os brinquedos, que se dizia antigamente "para meninos", estão de "feminizando", preste atenção! - combinamos escrever juntos sobre isso).
Ísis cobrindo Osiris com seu Manto (Véu). Ísis concebeu Hórus (consciência) sem relação sexual.
Mas, centremos agora nossos olhares à questão da moral sexual, pois precisamos falar do "relativismo moral" .

Ora, nesse mundo em gestação cultural, parece haver tendência ao fortalecimento do “relativismo moral”. Um fenômeno que parece se consolidar cada vez mais na cultura ocidental e que sinaliza para uma flexibilização (ou relaxamento) da moral e dos costumes, em particular, os relacionados à sexualidade.


Nele, se consagra uma “ética sexual” contextualizada, ou seja, para cada grupo (ou tribos) haveria uma ética ou moral própria ou próprias - não necessariamente concordantes entre si.

Em resumo: o que é “imoral” ou “errado” para certo grupo, pode não ser para outro (estamos aqui aproximando os conceitos de “ética” e “moral” para simplificar).

Em textos anteriores falamos desse relativismo no tocante à “infidelidade feminina”, ou seja, no grupo das "católicas carismáticas" a "fidelidade sexual ao parceiro" era considerado algo fundamental. Já para o outro grupo pesquisado, ou seja, de "mulheres afastadas do catocilismo oficial", a situação era bem diferente, se relativizava para quase metade das entrevistadas.

Quando falamos em “grupos” necessariamente nos deslocamos para tentar compreender o que seria as chamadas “tribos pós-modernas”, ou seja, as tribos urbanas que povoam as nossas grandes cidades.
Maffesoli chama-as de "legiões" nas quais há um “denominador comum” que é a “participação mágica num gosto específico”, ou seja, juntam-se segundo sentimentos às vezes não identificáveis objetivamente, pois relacionados a afetos, à sensações mais difícies de se apontar a um simples olhar.
E isso é bem comum em algumas seitas, em grupos esportivos, entre os “Emo”, "os metaleiros", os "góticos", as associações, as turmas de esportes radicais, os naturistas, etc. Todos, inclusive, com a participação muito intensa das mulheres .


Notem que esse fenômeno tem estreito relacionamento com uma período de nossa história que é herdeiro de um processo no qual os grandes sistemas políticos e ideológicos, os quais prometiam (e profetizaram) uma sociedade perfeita, fracassaram (pelo menos parcialmente). Sistemas os quais se estabeleciam o que o indivíduo "deveria ser" ou fazer para ser bem sucedido, a partir de uma espécie de magistério moral, como o "códice de Moisés".

Numa perspectiva se se alcançar "no futuro" a felicidade e o bem-estar coletivo: algo que não aconteceu.

Talvez por isso, tais promessas irrealizadas, com todas as suas “verdade universais” inerentes, caíram meio no vazio, especialmente depois das duas Grandes Guerras Mundiais. Por consequencia, a razão, o logos ("perfeito") perdeu um pouco de seu cédito e começou a ceder espaço para o Eros (símbolo também do imperfeito, do desequilíbrio). Lembrem-se que, na mitologia grega (no Banquete), Eros é filho de Pínia (a pobreza).

E mais: a filosofia e a ciência política (todas duas entoando o hino de louvor à razão) idealizaram um mundo maravilhoso que o nazismo transformou em um verdadeiro inferno na terra. Óbvio que esse fracasso de se construir um paraíso terrestre (ou uma “Cidade de Deus” como Santo Agostinho sonhou) trouxe implicações importantes no campo da moral sexual. Pois os códigos morais consagrados perderiam sua natureza inquestionável.
Com isso, se "relativizaria" a moral.

Mas, por outro lado, também é verdade que a sexualidade (no seu sentido restrito) às vezes parece está se transformando num produto de supermercado. Usam-se, experimentam-se, ou trocam-se relacionamentos sexuais e afetivos como se fossem produtos de consumo, escolhidos numa prateleira. Continuaremos nos próximos textos, para tratar da superficialidade das relações e mais particularmente para falar da doutrina moral católica...

Referências: O tempo das tribos, M. Maffesoli, A parte do diabo, M. Maffesoli; A fé do Sapateiro, Gibert Durand, A história da sexualidade, Michel Foucault, Lucrécia Bórgias, Geneviève Chastenet.










13 comentários:

  1. André,
    Parabéns pelo novo texto!!
    A sua escrita em passagens curtas com uso de imagens excelentes revela leveza no trato de um tema ainda tido como "pesado" por tantos.

    Carlos André.

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  2. Ótimo texto. É muito bom termos opções de leitura como esta na internet. Parabéns.


    Manoel Messias Belizario
    (mensagem enviada por e-mail)

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  3. André meus parabéns! Precisamos alargar as fronteiras das nossas discussões, sociabilizando as informações que temos.

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  4. Excelente escrita, André!

    A igualdade torna imprescindível, para ambas as partes - homem e mulher, o respeito à liberdade e à individualidade nas relações subjetivas, não obstante a "ética" do grupo social.

    Aguardo, ansioso, o próximo texto, especialmente para melhor conhecer/debater o posicionamento da doutrina moral católica sobre o assunto.

    Hugo

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  5. É lamentável que textos como este tenham que percorrer ainda um longo tempo (100...) até que se diluam em consciência coletiva. Embora as mulheres, nas últimas décadas, tenham consquistado certa liberdade em relação à sua sexualidade, muito ainda há que ser 'desconstruído' em nossa sociedade. O velho formato tem raízes profundas. É cartilha dos homens, das mulheres, das crianças. Aliás, essa discussão só é polêmica porque está relacionada à mulher. Afinal, sexo nunca foi 'problema' para o homem. "Ele precisa fazer, está em sua natureza - ele pode". Discursos assim ouvimos desde sempre, estão selados em nosso viver.

    Belo texto, André.
    Abraço.
    Ricardo Fabião

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  6. André, gostaria de parabenizá-lo pelo primor de blog! Nota-se muito capricho e conhecimento em cada palavra utilizada para a confecção de tantos textos ricos e bem escritos! Parabéns de verdade... sou assídua por aqui! beijos

    Joena Vieira

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  7. André!
    Parabéns pelo blog! Textos perfeitos, imagens belíssimas e bom gosto em todas as escolhas.
    Continue sempre nos presenteando com tanta cultura e análise.
    Estou divulgando o blog!

    Abraço
    Raquel Travassos

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  8. Olá André,

    Por acaso já há algum tempo que visitei o seu blog. Acho que está muito bom e que trata de temas muito interessantes.

    Votos de sucesso.

    Namasté,

    Al Rama Lahan

    Enviado pela http://comunidade-espiritual.com/mail/view/id_91995/

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  9. Top 24h em Artes & Cultura
    Olá andreagraagra,

    Um artigo seu tornou-se popular no Diga Cultura.

    O artigo foi o seguinte:

    "A mulher pós-moderna e a moral sexual"

    http://digacultura.net/artes-cultura/a-mulher-pos-moderna-e-a-moral-sexual


    Até já!
    A Equipa do DC.

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  10. Simplesmente excelente.
    Parabéns, André.

    Abraço,
    Al Rama Lahan

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  11. Show! Surpreendente,informativo e interessante ,são os primeiros adjetivos que vem a minha mente depois desta leitura.Algum tempo atrás tive contato com um amigo velejador que já deu a volta ao mundo várias veses e ele me relatou uma coisa muito curiosa que agora passo pra você.No pacífico sul existe uma ilha em que ,se em uma familia nascem quatro homens e nenhuma mulher para ajudar em casa nas tarefas domésticas ,eles simplesmente criam o ultimo filho como "Mahu" ,isto é,como se fosse uma mulher e na maioria das veses eles realmente se comportam desta forma e até sentem atração pelo sexo masculino ,ja outros não se adaptam e no futuro voltam a "ser homens" retomando sua vida casando e tendo filhos.Outro fato interessante é que quando eles estavam para ir embora desta ilha uma das mulheres pediu para ter uma conversa em particular com a sua esposa ,e pedio o marido dela emprestado , deixando claro que não queria ficar com ele,mas era só por uma ou duas noites explicando que o motivo era que os filhos deles tinham limdos "olhos azuis" e ela queria um filho com aqueles olhos.Esta conversa so foi revelada ao marido muitas milhas após terem partido,imagine porque??!!

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  12. Meu nome é Emeline, faço Jornalismo na Unisul, em Santa Catarina. Estou fazendo um ensaio que vem de encontro com este teu texto. Se não te importares e caso seja possível também, eu gostaria muito de conversar e trocar material. Creio que tenhas coisas interessantes na área. Obrigada!

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    1. Cara Emeline, estou a sua disposição, andreagraa@gmail.com; https://www.facebook.com/andreagraa; envie-me o seu email que eu envio o meu telefone. Abraços!
      Obs: Publiquei um livro mê retrasado sobre o tema, posso lhe enviar.

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