sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Igrejas ortodoxas



Na ilha de míkonos, segundo falam, há 365 igrejas, ou seja, é possível se frequentar uma por dia durante um ano. A ilha, repleta de histórias e mitos, é uma celebração à vida e ao prazer.



Do ponto de vista religioso, os gregos na sua grande maioria são cristãos ortodoxos. A igreja ortodoxa se separou da igreja romana (o grande cisma do oriente em 1054)motivada inicialmente por questões de natureza cultural e, posteriormente, por questões políticas e religiosas (teológicas). Dois fatores são fundamentais ao cisma: uma foi a tentativa de se impor aos ortodoxos a primazia do Papa (uma espécie de monarquia papal); a segunda de ordem teológiica, a famosa causa filioque.

Ora, os ortodoxos concederiam ao Papa uma primazia de honra, mas não a primazia universal. O Papa exigia o reconhecimento de sua infalibilidade. Para os cristãos orientais, todavia, em questões relacionadas a fé, a decisão final deveria ser submetida não ao Papa isoladamente, mas a um concilio com todos os bispos da Igreja. Quanto à causa filioque, a disputa teológica envolvia os termos sobre o Espírito Santo no Credo de Nicéia/Constantinopla, ou seja, o espírito santo, para os ordodoxos, procederiam só do Pai e não do filho(por isso, o termo filioque). Lembrem-se da nossa forma de benzimento (um rito pagão incorporado pelo cristianismo primitivo). Curiosidade: Fazemos (no ocidente) o sinal da cruz traçando sobre si o sinal da cruz do ombro esquerdo para o direito, os cristãos ortodoxos fazem-no ao contrário e usando os três dedos (símbolo da santa trindadade), uma consequência da causa filioque.

Quanto à moral sexual, importante enfatizar que os padres ortodoxos não se submetem ao celibato obrigatório (é opcional), diferentemente, os bispos e os monges são celibatários. Seria essa uma boa opção, nos parece, a ser seguida pelo catocilismo romano.


quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

O sentimento de culpa e a repressão à sexualidade feminina.


Seriam esses temas ainda vigentes nos nossos dias?


Antes de adentramos nessa questão, precisamos, antes de qualquer coisa, voltar ao século XIX, para falarmos um pouco da mulher burguesa (o modelo ideal de mulher cultuado à época o qual perdurou por muito tempo no imaginário ocidental).

A dama-lírio (como alguns a chamaram) nutria um profundo sentimento de medo em relação ao desejo ( tanto o desejar como ser desejada. Por isso, estremecia ante a possibilidade de ser invadida por um "olhar sensual" ou mesmo de se envolver em situações nas quais o esteriótipo, concebido pela moral austera (burguesa), sofresse algum tipo de abalo.
Falamos de moral pregada, muitas vezes, não necessariamente seguida. Importante esse ponto: pois sempre haverá um hiato entre o que se prega (moralmente) e o que é realmente seguido.

Era como se a mulher, símbolo da burguesia, não pertencesse a natureza, transformada que foi num ser quase assexuado quando fora das paredes do lar, do sagrado lar burguês. Idealizaram um mulher na qual a sexualidade seria necessariamente associada à procriação e a maternidade.

Uma tentativa de castrar os prazeres femininos quando fugisse ao modelo moral reinante, um modelo imposto pela sociedade pratriarcal, ou seja, na perspectiva do homem (do pater). E diga-se de passagem um homem que exigia uma santidade sexual de sua mulher e povoada os famosos bórdeis europeus.

Para Rouanet era como se a voz da sociedade tentasse asfixiar a voz da natureza (da mulher) que pedia o prazer, mesmo que incoscientemente. Jogavam-se os tigres (da moral) em qualquer expressão de fuga ao modelo mulher-mãe-santa, ou seja, uma tentativa de desvirtuar a própria natureza da mulher (tigres X tigres). A intenção era ao final conter sexualmente a mulher para atender aos valores impostos pela moral burguesa.


Isso gerava uma situação insurportável à mulher. Esconder, reprimir a sua própria natureza para se fazer aceitar pelo meio (a sociedade), ou seja, incorporar um papel forjado por uma cultura notadamente patriarcal (machista), a despeito dos seus sentimentos, emoções e desejos .

Sartre enfatiza-nos esse drama de ser mulher no século XIX: «uma mulher da sociedade burguesa, quando acaba de se comportar como uma fera, deve ser como um anjo». Em outras palavras, depois de representar a “Eva pecaminosa” ou mesmo Lilith, as mulheres do cotidiano imediatamente teriam de se parecer com a Virgem Maria.

Para Rosseau, uma verdadeira esquizofrenia. Corbin, por seu lado, nos faz perceber essa tensão como uma «bipolaridade feminina», que terminou por modelar as figuras de volúpia as quais povoam o imaginário social.



Do ponto de vista religioso, a própria confissão auricular introduzida pela igreja corrobora com esse drama, ao tentar controlar o corpo e os pensamentos da mulher - uma das ferramentas mais eficientes da cultura católica cristã para monitorar a moral sexual feminina. Por isso, especialistas consideram «o século XIX a idade de ouro do sacramento da penitência».

Ora, o confessor tornar-se-ia uma figura quase obsessiva quando se tratava de sexualidade, com implicações importantes na relação culpa cristã e feminino oprimido. Sob essas circunstâncias, esse período histórico se apresentaria como um marco no que se chamaria «sintomas específicos do sofrimento humano» (Alain Corbin)

Não é à toa que Freud, «um positivista que não deixou de usar a sua paixão pela arqueologia à investigação do inconsciente», segundo Maffesoli, sistematizaria os conhecimentos fundadores da teoria da psicanálise a partir de casos de histeria nas mulheres em Viena, segundo seu mais famoso biógrafo, Peter Gay.

A psicanálise começaria, então, a justificar e amenizar a culpabilização dos desejos e das fantasias que provocaram por tanto tempo aflição nas mulheres, apesar de seu apego à racionalidade, típica de seus tempos.

O desejo, dito na linguagem clerical como demoníaco, pois se apresentava como doença a desnaturar a natureza original do homem e contrariar a vontade de Deus, passaria a ser tratado como um algo natural ao ser humano, demasiado humano diria Nietzsche. Um sinal de que a tentação e o desejo não poderiam ser facilmente controlados, melhor, não se tratava de saber-se conter (pela razão) à moda estoica (e também monaquista).

Ulysses, já nos teria ensinado, na Odisséia, ser um estratagema desaconselhável confiar-se na contenção quando nos defrontamos com apelos verdadeiramente fortes aos instintos. Sua certeza em não resistir às sereias, o fez sabiamente tampar os ouvidos de sua tripulação, com cera, e amarrar-se ao mastro do navio. Conhecedor da força da emoção (dos instintos) quanto aguçado pela tentação do canto irresistível das sereias. E mais, estamos a falar de Ulysses, de astúcia e serenidade míticas.


A sexualidade, apesar de deveras reprimida pelo mundo burguês e pela igreja, passaria, a partir da psicanálise, do próprio confessionário e da inquietante preocupação científico-médica com os prazeres do corpo, a ser discutida de forma generalizada. O que era para ser silenciado tornara-se linguagem corrente - um paradoxo não previsto pelo sistema e que Michel Foucault tão bem retrataria.

A igreja, por seu lado, parecia viver alheia a essas descobertas “assustadoras” relacionadas ao sentimento de culpa e a essa opressão cultural no campo da moral sexual.

E continuaria a disseminar a exigência de um porte modesto principalmente através de uma pedagogia inerente às congregações religiosas femininas, a qual pregaria em geral a necessidade: «(...) de se quebrar o ritmo dos impulsos, estancar as fonte de emoção e restringir os assomos de sensualidade. Já que os sentidos seriam semelhantes a portas abertas ao demônio, preciso, pois, ensinar a prudência, instruir a juventude a ocupar as mãos, recear o próprio olhar, saber falar em voz baixa e, melhor ainda, compenetrar-se nas virtudes do silêncio».

É com posturas dessa natureza que o catolicismo reforçaria cada vez mais o modelo angelical - a exaltação à virgindade e o ascenso de um «lirismo da castidade». Um modelo de domesticidade geneticamente ligado ao culto mariano, símbolo de mulher inacessível.

Numa clara revivência do neoplatonismo dos primeiros séculos, segundo Jean Delumeau. (Trecho adaptado do livro: Moral Sexual: a mulher pós-moderna no Confessionário a ser publicado no primeiro trimestre de 2010 por André Agra )

Em que circunstâncias esse modelo ainda se faz presente em nossos tempos?

Uma discussão sobre o conceito de mito
















Conceitos de Mito

Quando Fernando Pessoa, em seu livro “Mensagem”, exalta o mito como "um nada que é tudo” (Barbosa, 2005), não está apenas poetizando sobre essa faceta primordial da humanidade. Mas expressando, no esplendor de sua maestria, uma intricada e essencial característica do “logos” humano e de sua relação com o transcendente e sua história na terra, seja ela imaginária ou não.

Era como se reconhecesse no “tudo”, talvez intuitivamente, a existência de uma força imanente aos povos e civilizações. Algo responsável pela construção de representações alegóricas e poéticas. Concebidas a partir da capacidade dos povos de assimilação de seu passado remoto, de arquétipos primitivos e de “energias cósmicas” e interiores. Tudo dentro de um arcabouço de religiosidade e de formas de vivência as mais variadas.

O poeta português, nesse momento fascinante de criação, se aproxima do que Bachelard (2006) chamaria de “grande achado”. Situação na qual a “imagem poética pode ser (ou se tornar) o germe de um mundo (...)”.

Importante percebermos que os mitos são contidianamente criados,recriados e cultuados, muitas vezes sem atentarmos para tanto, ex. Matrix (e sua mitologia relacionada). Interessante, a remitificação a qual vivenciamos nos tempos atuais (para muitos os tempos pós-modernos, uma corrente de pensamento que me acosto).



Na pós-modernidade, há uma revificação de mitos antigos, como nova roupagem tecnológica, ex. o filme Avatar (discutiremos os mitos existentes no filme em texto próprio posteriormente).

Para o mestre do estruturalismo, Lévi-Strauss, o mito seria a “porta de acesso privilegiado às leis de funcionamento do inconsciente, sem nenhum tipo de constrangimento: nem mesmo a realidade exterior” (Novaes, 1997) e é ele que garantiria a eficácia simbólica dos ritos.

No mesmo sentido, a função mestra do mito, nos diz Eliade, é “revelar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas”.

Importante ressalvar que o conceito de mito não é exato nem unânime, há quem trate a narrativa mítica como um dado puramente orgânico - com a permissão do exagero, o “nada” do poema de Pessoa. Reflexo da ilusão de mentes que conceberiam seres e situações fantásticas. Sobretudo, advinda de anseios sofredores de um devir, (no sentido post mortem). Ou mesmo, da necessidade de conceição de heróis e suas antíteses com poderes mágicos, os quais satisfariam fantasias e carências psicológicas profundas. Tudo na tentativa de amenizá-las.


Sem adentrar nessa discussão, importa observar a existência de áreas de convergências entre os mitos e suas representações, nas mais diversas culturas. Por exemplo: a conceição de um virgem, com interferência do sobrenatural, está presente no Cristianismo com Maria (Mãe de Jesus). Mas do mesmo modo, na Mitologia Romana com “Silvia Rea” (mãe de Rômulo e Remo). Na mitologia hinduísta com a virgem Devaqui (mãe de Krishna), fecundada pelo “Espírito dos mundos” (Shuré, 1986 - p. 28).

Outro exemplo, é o deus mensageiro, Hermes, que encontra parecença, nas Religiões Afros, com Exu. Figura que sofreu uma substancial deformação do mito originário, e no Brasil erroneamente é tratada como demônio.

O Gênesis, por sinal, repete o mito da criação registrado num texto da mesopotâmia chamado Enuma Elish (Kirsch, 1997 - p. 235). A icnografia de Ísis, arquétipo da deusa mãe, amamentando Hórus (Gadalla, 2003 - p. 83) possivelmente revelaria um ar de frescor e respeito tão profundo para o povo egípcio, como o da Virgem Maria com o menino Jesus no seu colo sagrado, o faz com relação aos Cristãos. Em especial, os Católicos.

Os exemplos são infindos, como se houvesse, no inconsciente coletivo, chaves de compreensão utilizando a força simbólica dos mitos para conferir inteligibilidade ao metafísico (divino).

É nesse sentido, que Danielle Pitta (2005, p. 16) ao comentar o conceito de inconsciente coletivo de Jung, define o mito “como a organização de imagens universais em constelações, em narrações, sob a ação transformadora da situação social – o que implica unidade entre o indivíduo, a espécie e o cosmo”. Decifrá-los, portanto, em linguagem e imagens, é perceber o que toca no âmago dos sentimentos humanos e o faz transcender.

Entretanto, há uma faceta dos mitos que merece ser abordada, e que é fundamental na compreensão do comportamento feminino: trata-se dos efeitos simbólicos gerados a partir de interpretações tradicionais e misóginas das narrativas bíblicas, disseminadas ao longo da história, e que contribuíram na elaboração de um conjunto de representações e simbolismos do ser-mulher, na maioria das vezes degradante, arraigados à sociedade ocidental.

A eficácia simbólica de uma leitura tradicional do mito adâmico

Partindo-se do pressuposto discutido “anter”, de serem os mitos espelhos das relações humanas. Em conseqüência, o seriam, também, no tocante as suas aspirações de poder. A partir disso, poder-se-á especular sobre a sua aproximação e implicação com o processo de dominação e da eficácia simbólica decorrente desse processo.

Nesses moldes, a interpretação mítica pode conter a intencionalidade do poder dominante de impor sua coerção, como se tutelado fosse pelo divino; e com isso geraria representações simbólicas eficazes, disfarçando uma característica “cultural” situado numa determinada época e tornando-a, mediante repetições seguidas, uma espécie de conceito universal ao sabor de interesses e numa perspectiva atemporal, ou seja, consagra-se o efeito simbólico de uma intenção - entranhada na estrutura social - como se a verdade fosse.

Nesses termos e considerando o tema ora em debate, haveria o perigo dessa necessidade de poderes mágicos serem manipulados, e a própria intervenção mágica se tornar inquestionável, p.ex., a leitura e interpretação dos textos bíblicos, de forma literal, sendo estes textos sagrados, por isso, irretocáveis, se apresentariam acima de questionamentos, como se fossem imaculados, daí, inclusive, sua poderosa eficácia simbólica.

Ao se falar em eficácia simbólica nos termos de cura através de uma crença em um ente superior-metafísico, em geral, e por intermédio de seus rituais, se processaria uma mudança atestável no corpo (orgânico) do indivíduo curado, o que ocorre comumente em cultos de candomblé, nos neopentecontais e mesmo nos carismáticos, isso naturalmente, quando esses rituais não são utilizados como substitutos radicais das intervenções médico-científicas, situações na quais os efeitos podem ser de natureza devastadora aos paciente, assim parece. Mas aqui estar-se-á tratando, em tese, de efeitos simbólicos de resultados positivos.

Todavia, a proposta dessa breve discussão diz respeito aos efeitos simbólicos danosos para o gênero feminino e, doravante, para sociedade como um todo.

As civilizações enraizadas na religião hebraica trazem em seu arcabouço um traço cultural marcante, o “patriarcalismo”, sendo um dos seus pilares fundamentais.

Os mitos de criação presentes no Velho Testamento, alicerces precípuos do Cristianismo, do Judaísmo e do Islamismo são intensamente identificados com a força do poder patriarcal.

Essa força alimentada pela repetição incansável das leituras míticas, ao longo dos tempos, adquiriu uma eficácia simbólica impressionante, e criou um estigma perigoso para o feminino.

Dentre esses mitos fundantes, encontra-se o “Adâmico”, inserido no Gênesis, primeiro livro do Pentateuco, supostamente escrito por Moisés. E este está repleto de afirmações de “preponderância” de gênero, suscitando um desequilíbrio imperioso da condição da mulher perante o homem, isso, naturalmente, sob os auspícios da leitura tradicional judaico-cristã.

A criação da “primeira mulher”, vide Gênesis (2, 22) – “E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem” - é a partir da costela de Adão, como alguns popularmente alcunham de “órgão torto”, sugerindo a inclinação desta para o mal. Corrobora com essa sugestão uma das teses centrais do “Malleus Maleficarum” - “porque Eva nasceu de uma costela torta de Adão, portanto nenhuma mulher poder ser reta (I,6)” (Muraro, 2002 – p.15), circunstância vivida na mitologia grega por Pandora, a primeira mulher, usada como instrumento de vingança por Zeus.



















Adão e Eva

Mais à frente, em Gênesis (3, 1), transcrito abaixo, há o primeiro contato com a serpente - no mito, uma figura criada por Javé - dito por muitos Cristãos a representação do “demônio”, mas que representa o intelecto na Mitologia Egípcia (Gadalla, 2003 – p. 43) e, consoante Pitta (2005 - p.35), é, também, um símbolo associado ao falo, em conseqüência, à fertilidade (“simbolismo ofidiano”).

Gênesis 3, 1 - Ora, a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o SENHOR Deus tinha feito. E esta disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda a árvore do jardim?

Porém, esse contato é feito pela mulher, aludindo-se, por “vias tortas”, ser ela mais propensa a se entregar às tentações. Em seguida, ao ceder, confirmaria a ironia wildeana com relação à tentação , no caso do poeta e escritos irlandês, sem distinção de gênero; e ainda leva Adão para a “perdição”, i. é, acessa a “árvore do bem e do mal”, a “árvore do conhecimento”.

Gênesis 3,6 - E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido , e ele comeu com ela.

Não esquecer que a partir de então, os olhos do homem e da mulher foram abertos para o conhecimento, e aí, interessante observar, surge o pudor para com o corpo, vide Gênesis (3,7), outro marcante elemento gerador do sentimento de culpa da mulher, manipulado a fim de sofisticar o processo de dominação. O corpo passa a ser o receptáculo natural dos desejos e tentações.
Gênesis (3,7) - Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus ; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais.

Não é difícil, pois, captar o efeito simbólico da tradição cristã primitiva ao desenvolver “uma atitude de imputação de culpa à mulher pela entrada do mal ou do pecado na história humana”. E esse mal fica relacionado à sexualidade, segundo essa tradição, como “uma transgressão a um estado de inocência primitiva”. Daí advir o pecado original da relação sexual (Gebara, 1994 - p. 41).

No diálogo que se segue, há um espanto de Deus com a vergonha que agora a nudez causa em Adão (Gênesis 3,10), e, então, Deus indaga-lhe: Quem te mostrou que estavas nu? Comeste tu da árvore de que te ordenei que não comesses? (Gênesis 3,11). Nota-se Adão, por conseguinte, a culpabilizar a mulher pelo “desvio”: A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi . (Gênesis 3,12).

Com efeito, a “ira” de Deus se abate sobre os dois, mas, os versículos que se seguem não deixam de induzir a compreensão de que a mulher além de culpada passa a ser subjugada, e a ela é relegado um papel secundário na história. Gênesis (3,16) assim afirma: multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará .; e (Gênesis 3,17): E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, (...), maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida; falam por si só.

Como se vê, coube à mulher, na figura de Eva, a “pior parte”, a de carregar nos ombros a “pusilanimidade” de ter cedido à serpente. Difícil, ante a interpretação literal , fugir dessa carga mítica, simbólica, enraizada no consciente coletivo.

É essa “suspeita” lançada sobre o gênero feminino através dos simbolismos distorcidos desses mitos, que ainda perdura ao tempo hodierno por sua intensa eficácia simbólica, uma “letra escarlate” a vagar no imaginário de uma sociedade ainda patriarcal.

A eroticidade e o prazer - um conto


                                                             Sátiros

As ruas estavam abarrotadas de gente, naquela tarde quente de verão, o congestionamento intenso de carros, com seus gases poluentes, tornava quase impraticável a respiração. A pobre flâmula da tranquilidade, ente estranho àquela convulsão, era negada até nas sombras mais afastadas. Era o estresse típico dos tempos modernos se encorpando monstruoso nos apáticos semblantes dos transeuntes. Um arranjo citadino que tornava o meio urbano um lugar inóspito e insalubre. E, como tal, denunciando uma civilização cansada, doentia, e cada vez mais carente do contato imprescindível com a natureza.

Alheia a toda essa neurótica conjuntura, sentada a beira de uma espaçosa janela, situada no oitavo andar de um imponente edifício, estava a figura pensativa e compenetrada de uma jovem mulher. Sua silhueta no vidro se abstraia incólume às visões lúgubres do clima lá de baixo, sua suavidade e beleza, imperceptíveis em virtude da madrasta distância, ocultava aquele enlevo, quase perdido, clamando para ser achada.

Era Helena, uma mulher meio fora de seu tempo, de aparência calma e misteriosa, e de profunda inquietação em seus pensamentos. Sua curiosidade por desvendar a psique humana, a fez, ultimamente, se aventurar num estudo sobre o prazer sexual. Em suas facetas mais variadas, em suas formas mais grotescas e sofisticadas de repressão. Arriscava-se, assim, a decifrá-lo, dissecar esse elemento primordial da vida, de modo a entender melhor sua mente, seus desejos, seus conflitos internos.

Sabia, no entanto, para sua tristeza, que o caos e a superficialidade das relações humanas reinavam com pungência, com arrogância. Lançando pesados fardos à vida dos que buscavam e ainda acreditavam que o supra-sumo do deleite, dos encantos puros da alma, habitava nas fontes naturais, nas sensibilidades primitivas do homem, e não no exorbitante apego a um mundo efêmero e materialista, onde o consumo sofisticado - a grande vedete da sociedade - é inacessível à maioria, porém adorado por quase todos. E temia que o prazer mais arcaico virasse mais um produto de consumo em meio a um hedonismo pós-moderno.

Dos tempos edenistas, compreendia restar apenas resquícios. Mas essa cinza (entendia ela) residia e resistia impregnada numa região profunda da consciência, que alguns céticos entendiam intocável, inalterável. E na qual montanhas de sombras impediam que os sinais externos adentrassem, conquistassem-na, subjugando-a. Pensava ser daí a possibilidade de resgate de uma concepção de vida mais prazerosa, pois mais apegada às raízes, ao berço dos instintos. Bastava não ter receio de se entregar, de deixar o inconsciente se pronunciar .

Por isso admirava tanto o incompreendido e enigmático Nietzsche , que massacrava com seus aforismos a lógica do comum, o culto à razão, à passividade, o temor à verdade. Ao passo, que pregava um soerguimento do homem, seu endeusamento, através do inaudível, da música, do respeito aos instintos, os quais considerava mais sólidos que as culturas.

Era, então nessas horas que Helena vibrava, indagando-se, sorridente, se não seria plausível afugentar o receio do incontrolável. Do irracional que pulula em nossas mentes, que inebria os desejos mais inconfessáveis. Enfrentando sem medo as verdades escondidas, os conflitos interiores. Munida da poderosa “sabedoria dionisíaca ”, na forja, tal qual Epimeteu , de um super-homem (além-homem) nietzcheniano, sem deuses a temer. Sendo ele próprio um Deus .

Isso a fazia entregar-se, por um breve instante, à exaltação, à reverência empolgada, como se curvando à famosa asseveração do pai da psicanálise a qual situava o princípio do prazer como único norteador dos objetivos da vida, talvez um exagero permitido a um gênio.

Entretanto, Helena era astuta o suficiente para não deixar de reconhecer, mesmo relutando, a importância do amoldamento do princípio do prazer ao sistema moral, criado e instaurado pelo homem. Como condição fundamental de construção dos pilares básicos da civilização, de sua própria essência social. Ora, o princípio do prazer é acima de tudo arredio, instável, não distinguindo limites, prorrogações e muito menos o outro, o próximo, não se podendo identificar, portanto, irrestritamente, suas demandas com os desígnios de uma “vida feliz”.

Nesse intenso devaneio, a irrequieta Helena, já fora do senso da matéria, tentava entranhar-se mais na questão. E perguntava-se o que seria realmente o prazer, estar-se-ia a falar de prazeres do espírito ou do corpo, ou de sua “perfeita” adequação em prol da felicidade etérea, ideal.

Imaginava o pensamento aristotélico o qual enaltecia com veemência os prazeres do espírito . Considerando-os “a atividade perfeita”, a qual levaria o homem ao êxtase, aos píncaros do sentimento. Num espaço bem próximo ao divino. Capaz, inclusive, de propiciar as condições necessárias para superar a tentação ostensiva e poderosa dos prazeres da carne.

Uma espécie de ressurreição do pensamento de Orfeu , o tocador da lira encantada que fazia os carvalhos curvarem-se em deferência à sua música. Mas não deixaria de enfatizar que Aristóteles não pregava, como mais tarde os Cristãos, o absurdo do banimento dos prazeres corporais ou mesmo a sua condenação. Santo

Agostinho, por exemplo, ícone da Igreja Católica, afirmava que a relação sexual é um ato passível de culpa e precisa de uma justificativa: a procriação. Como tal, o sexo seria necessariamente sinônimo de procriação. Mais do que isso era afrontar os mandamentos divinos.

Nesse aspecto, Helena sempre fazia questão de suscitar como seria irreal o homem se livrar de suas emoções, de seus impulsos inconscientes, de sua sede de prazer. Embarcaria, assim por dizer, numa escalada de extravagância incomensurável, com repercussões nefastas ao mínimo do que se possa chamar de felicidade.

Contudo, sabia que boa parte da sociedade tratava o tema de forma bastante diferente de seu raciocínio. A opressão, aterradora e eficaz, sempre cativava adeptos, fazendo notórios estragos à vida das pessoas. Por isso, temia, como nunca, a força sempre renovável da moralidade excessiva – a velha, persistente e impiedosa moral, que tanto castrou ao longo dos tempos, e tanta melancolia e infortúnios neuróticos fez brotar na mente de homens e, especialmente, nas mulheres, que se consumiram por sentimentos de culpa, enlouquecidos e desastrosos.

Criaturas que se aproximavam da chama divina do prazer, com a pele ávida por emoções singelas, pois, humanas e irreprimíveis. Mas que eram perseguidas e excluídas pelas filosofias de interesse, as quais desvirtuavam o sentido das reações naturais, chamando-as de pecados mortais, tornando-as imperdoáveis.

Instituíam e ditavam os dogmas e os comportamentos, criando exegeses religiosas, códigos de posturas e leis universais. Usando, em grande equívoco, como arcabouço de inspiração, a anuência e orientação do morador onipotente do último círculo do céu, chamado por Dante de “Primo Móbile” . Como se a essência do amor, o Deus da ternura, perpetrasse a crueldade, a intolerância, e arquitetasse um império sob a mitra do medo, do temor, distanciado dos prazeres sensuais, que Ele próprio os criou.

Tudo isso era motivo de sua preocupação, de sua consternação. Não era à toa, que a chamavam exótica, mas, no fundo, era uma pessoa especial, combativa e altruísta, que não vivia passivamente, lutava por seu ideário.

Reconhecia sua pequenez (era apenas um grão de areia), mas se agarrava à utopia, a boa utopia, ao enxergar a mudança de algumas das regras pétreas vigentes, já nessa geração. E para isso ousava se atirar em lides públicas com notáveis moralistas, com “conceituados cidadãos”, empunhando o lábaro da libertação, da admissibilidade de um prazer mais amplo.

Sabia, entretanto, que sua tarefa era hercúlea, que não comportava soluções peremptórias, irrefutáveis, e precisava, antes de qualquer coisa, superar um óbice importante da questão: definir em que dose se daria essa liberação.

Esse era um ponto que a aturdia, incomodava-a, pois, se houvesse uma entrega, sem barreiras, ao gozo, ao deleite, provavelmente a sociedade sofreria um processo de desintegração, uma revolução niilista . Freud, já alertara sobre isso, quando dizia: “se o princípio do prazer dominasse sem restrições o funcionamento psíquico nos conduziria rapidamente à morte, ao repouso sem tensões, e não à felicidade”.

Helena, insistia, às vezes, em enamorar essa liberalidade radical, de permissibilidade expressiva, atendendo, sem censura, aos apelos intrínsecos do seu eu. Na verdade, era um exercício teórico que a permitia construir soluções, estratégias, através do tatear o extremo, além do mais, isso a fazia relaxar, soltá-la, purgar suas desilusões, seus desencantos.


Sua busca, portanto, servia-lhe de terapia, de catarse , aliviando muitas de suas tensões, de seus recalques, como se chegasse a um orgasmo intelectivo.

Mas mesmo em pensamentos, em exercícios meditativos, a realidade e os fatos se impunham. Jogavam-se a sua frente. E em quantas ocasiões ela já tinha constatado, talvez a seu contragosto, de sair-se melhor quem contemporizou às súplicas da carne, buscou a felicidade e os prazeres “possíveis”, dentro dos pactos e tabus impostos pela civilização.

Tudo isso a deixava atônita, perdida, inerte perante abstrações e objetivos tão altaneiros. Repetia, de seu modo, a eterna luta de Sísifo , erguendo arduamente a pedra ao ápice, para em seguida diante do surgimento de uma nova inteligência, uma nova linha de pensamento, quando se pensava finda a empreitada, retornar à base, aos pés do rochedo. Todavia, agora, com o risco de ser esmagada pela pedra volumosa e incontrolável do acordo médio e determinante do “comum”.

E assim ia se aprofundando em suas excursões mentais, sem perceber, no entanto, que os deuses tinham resolvido apimentar seu vagar no abstrato, com doses poderosas de realismo, queriam, portanto, testar na prática a interpretação de Helena concernente à ética do prazer, ou mesmo dar-lhe luzes para ajudá-la a desvendar suas inquietações filosóficas.

E não demorou muito, alguém bateu a sua porta, assustando-a, fazendo descer novamente ao mundo, sentir o chão tocar-lhe os pés, acordando-a. Dirige-se, então, lentamente à entrada de seu aconchegante apartamento e pergunta quem está do outro lado. Responde uma voz suave e pausada, identificando-se e pedindo ajuda.


Era Tália, prima de sua vizinha, há tempos atrás se encontraram algumas vezes, na tenra juventude, elas, apesar de pouco contato, nas oportunidades que estiveram juntas, demonstravam uma afinidade muito grande. Uma vez conversando com sua vizinha, contara-lhe que quando passeava com Tália, os meninos não paravam de assediá-las, já eram muito bonitas, o que despertava os olhares mais indiscretos e desejosos.

No entanto, ao abrir-se a porta, não mais surge a adolescente, mas uma bela mulher, de olhos amendoados, cabelos negros, pele macia, um pouco suada, vestida leve e transparentemente. Denunciando, sem melindres, um corpo escultural, de pernas rijas e definidas, insinuando um abdômen irretocável, e seios que insistiam em penetrar o tecido mole, como que se negando a permanecer na clausura frágil, querendo respirar, se mostrar ao vento.

A sensualidade manifesta de Tália provocou reações inusitadas em Helena, deixou-a desconcertada, experimentava, na prática, um sentimento estranho por uma outra mulher, não que nunca tivesse pensado, ou fantasiado tal sensação, mas agora sentia na carne. Espantava-se, assustava-se, pois vivenciava, sem saber, a excitação pura. Não adiantava explicar o que se sucedia naquele instante mágico, tudo estava acontecendo muito rápido, e sua mente sofreu uma espécie de lapso entorpecido.

Pois quando pensava ter, enfim, descido de seu mundo de perquirições filosóficas sobre o prazer, voltava abruptamente ao êxtase, invertendo o caminho aristotélico, passando da subjetividade do pensamento ao estonteamento carnal, numa brevidade assustadora, e mais inusitada, pois direcionava seu objeto de desejo para uma mulher desconhecida.

Firmou-se, então, um silêncio paradisíaco, pois a inusitada sensação parecia ser recíproca, a visitante inesperada dava sinais de intensificar o seu calor. Sua pele assumira uma coloração mais rubra, a respiração aprofundara-se, o coração batia mais rápido, escorriam pelo seu belo corpo pequenas gotas de suor, quase imperceptíveis, se não existissem olhos muitos atentos a flagrar o surgimento de úmidas marcas, deixadas, como de propósito, ao longo de suas delicadas curvas.


Restava às duas, depois desses eternos e luxuriantes segundos, somente suspirar e impor um desfecho mais controlável para a situação. Era a exigência do superego em detrimento dos impulsos inconscientes, dominadores imperiosos daquele encontro, que pelo jeito, não se dariam por vencidos facilmente, foram segundos tão intensos que a fala demorou a sair.

Tália, depois de cumprimentá-la com ardor, explica-lhe sua situação, viera passar uma noite na casa de sua prima, antes de viajar ao exterior com seu marido, todavia, não estava conseguindo ligar a energia do apartamento, e tinha, então, decidido solicitar a ajuda da vizinha, nem imaginava que Helena ainda morava ali.


Helena, já mais relaxada, informa que tinha havido uma pane elétrica no prédio e em todos os apartamentos se fizeram necessários reparos, como sua vizinha não estava e não tinha deixado as chaves, não fora efetuada a sua ligação, o que só poderia ocorrer, agora, no dia seguinte.

Helena, na sua espontaneidade, convida-a a pernoitar em sua casa, tendo em vista o empecilho criado, informou-a que as noites estavam muito quentes, do inconveniente de se dormir sem ar-condicionado. Seria, realmente, bastante desconfortável. Além disso, apesar de muito tempo, ainda guardava uma admiração muito grande por ela, e sentia-se na obrigação de acolhê-los.

Não foi preciso ir muito longe, poucos argumentos foram necessários, Tália aceitou o convite, na realidade, a decisão fora mais de sua libido , motivado pelo jogo de sensações estabelecido entre as duas.

Ela voltou para o apartamento da prima para avisar ao seu marido sobre a mudança de planos para aquela noite e contou-lhe da grata surpresa do seu reencontro com Helena. Sem questionar muito o epílogo suscitado, nem, por outro lado, valorizar, talvez por desatenção, o novo estado de espírito que transbordava, sem comedimentos, de sua sensual parceira, Adônis sugere, então, irem buscar as malas, quando Helena aparece à porta, apresentando-se, numa espécie de ingenuidade premeditada, tentando disfarçar um semblante inocente, porém embebido de desejos latentes.


Perspicazes, os olhos de Adônis, mesmo de forma tímida, não deixaram de notar a beleza estonteante de Helena, nem um certo ar de cumplicidade instaurado entre as duas.

Adônis se dirige para cumprimentá-la, segura-a delicadamente na cintura, esbelta como as das mulheres de Creta , seus olhos se encontram por um breve instante, os corpos, entretanto, se aproximam a uma distância onde o contato é inevitável, beija-a em uma das faces, já aspirando uma fragrância suave e ao mesmo tempo desconcertante, uma mistura de transpiração, perfume de flores e cheiro de excitação. No entanto, ao movimentar seu rosto em direção à outra face, por um descuido involuntário, ou preparado propositadamente por Afrodite , toca, levemente, a sua boca na parte superior dos lábios de Helena, suas peles se encontram, provocando uma sensação de intimidade deflagrada.


Sua esposa observava tudo, porém sem o comum e esperado sentimento de contrariedade, de um pouco de ciúmes, como seria natural. Um clima deveras estimulante já se estabelecera no ambiente, e a ansiedade pelo que poderia acontecer provocava uma certa dose de nervosismo, explícita nos três, como se aquele mundo se transformasse num templo hedonista .

Helena resolveu, por seu turno, acalmar os ânimos, mostrando uma prática incompatível com suas ideias mais arrojadas, mas foi a reação que ela tomou, talvez para brincar com os deuses, talvez para assumir o controle da situação, mesmo decepcionando os seus instintos. E sugeriu ao casal levar as malas para o seu apartamento, pois já tinham penado o bastante com o inconveniente ocorrido.

Aliás, estava anoitecendo, os últimos clarões do sol mesmo resistindo bravamente, se estertoravam. O pretume celestial penetrava destemido no horizonte, conduzido pelo sorriso prateado de Diana - a deusa da lua - ainda sem a imponência que lhe é peculiar, notadamente naquelas noites de verão, mas já mostrando sua beleza reluzente.

O casal, enfim, trouxe as bagagens e foi se acomodar no quarto indicado por Helena, que os deixou à vontade, sabia que eles estavam exaustos, e todos estavam precisando de uma trégua.

Ela se dirige, então, à varanda, querendo respirar. Estava confusa, tentava digerir, entender aquele sentimento avassalador para com seus atraentes hóspedes. Olhou para o horizonte para apreciar o esplendor da natureza, como que solicitando ajuda, alguma mão salvadora que a tirasse dos braços envolventes da tentação, sem precisar seguir o irreverente ditame de Oscar Wilde, o qual exortava, para indignação de muitos, que a única forma de vencer a tentação era cedendo a ela.


Mas os deuses, pelo jeito, não a deixariam em paz facilmente, parecia uma espécie de acordo entre os céus e o âmago de Helena, para não deixá-la apagar as fogueiras de seu corpo, de sua mente.

E o firmamento, ao invés de sossegá-la, faz-na retomar sua viagem, seu devaneio. Sua mente, então, recria, como que sugerindo saídas prazerosas para o seu dilema sensual, imagens dos cultos da fertilidade, antigas celebrações em homenagem às divindades femininas, verdadeiras epifanias de prazer, onde o primitivismo das relações sexuais em grupo se firmava como um instante sagrado, tutelado pelos deuses ancestrais, e sem a inibição dos sistemas morais inventados pelo homem e seus novos deuses.

Seus olhos fechados vislumbram, sob suspiros relaxantes, aqueles corpos desnudos, vigorosos, se misturando sob a luz do luar, jactando torrentes de orgasmos, num êxtase inigualável, pois, natural, desinibido e animista. Helena, fica um pouco tensa, pois não encontra guarida para o seu frágil pudor. Existem ocasiões onde o confronto com os instintos é impraticável. Resolve não mais olhar o crepúsculo, e vai ao seu quarto para tomar banho.

Enquanto isso, o casal arrumava suas bagagens no quarto de hóspede, quase sem falar, vez que tomados por uma sensação de timidez e vergonha, ante o que vinha ocorrendo. Nenhum dos dois conseguia falar de outro assunto, e o que desejavam conversar, faltavam-lhes coragem, sobravam-lhes, entretanto, a vontade quase explícita nos seus rostos, nas suas peles, nos seus sexos. Forjou-se uma volição muda e irresistível que poderia aflorar incontrolável a qualquer instante.


O Leviatã da consciência, já enfraquecido, sentia perder o domínio da situação, o breve futuro poderia ser caótico para seu poder de mando, e os corpos sentindo a guarda baixar, aos poucos, iniciavam uma rebelião, um processo de libertação de desejos e fantasias antes adormecidos.

As palavras não emergiram, nem precisavam, não era tempo de retórica, mas de ação, pois assim exigia o anseio erótico - majestade inconteste daquele momento. Adônis abandona a sua passividade inquietante e destrona o silêncio da alcova. Rendera-se, enfim, aos seus impulsos, deixando a temperatura, há pouco contida, insuflar seus movimentos.


Suas mãos procuram o corpo de sua esposa, segurando-a firmemente naquela cintura sinuosa, e puxa-a, bruscamente, de encontro ao seu corpo, beijando-a ofegante e ininterruptamente. A blusa de sua amante, já entreaberta e desinibida, faz desabrochar os seus belos seios, que de imediato são apalpados com uma espécie de bruteza suave e permitida pela seiva do desejo.

Os inertes panos são rasgados, arrancados, deixando parte de seu corpo nu. Adônis não resiste, e começa a passar seus lábios umedecidos nos seios de Tália, mordendo as suas aréolas rosadas, ela respira fundo, fecha os olhos e lambe seus próprios lábios, dá, em seguida, um pequeno grito quando o seu marido desce, deslizando a língua, até o final de sua barriga. A lascívia dessa intensa agitação romantizada faz-nos perder o fôlego, suspirarem sem controle. O sexo dele deveras excitado põe-se a saltar da calça, encostando-se à intimidade molhada de Tália.

Esta, então, já totalmente tomada pela ardência do prazer, puxa-o para o toalete, arrastando-o, sem, contudo, deixar os corpos se separarem, liga o chuveiro e entram debaixo de uma ducha morna e intensa, transam tão ardentemente que os gritos de gozo extrapolam as paredes do quarto, ecoando por boa parte do apartamento.

Helena, que estava prestes a tomar o seu banho, escolhia um “cd” de música clássica, como sempre gostava de fazer antes de suas demoradas duchas, quando de repente escuta os sons inusitados reverberando das paredes vizinhas. A barreira física não era capaz de conter a ardência sensual que se verbalizava em forma de um dialeto decifrável e admirado por ouvidos propensos à bem vinda captação.



Não resistindo, ela se deita imediatamente na sua confortável e extensa cama, e entre os lençóis brancos, se despe vagarosamente, começando a se tocar, acariciar suas coxas macias, passando os dedos pela boca umedecida, encostando-os na sua língua e chupando-os. Depois desce as duas mãos pela sua barriga rija até encontrar seu sexo, que umedecido aguardava já impaciente o toque fatídico e orgástico. Gozou como poucas vezes na sua vida, nunca uma masturbação foi tão prazerosa e real.

A sensação foi tão marcante que a assustou um pouco, temeu o desenlace que poderia ocorrer naquela noite. O pós-gozo tinha amainado a libido, e a razão tinha se recuperado, não com toda força, não obstante, conseguia impor já alguma limitação ao turbilhão de desejos aflorados da mente de Helena.

Uma hora depois, estavam os três sentados à mesa se deliciando com os apetitosos pratos encomendados por Helena, entre olhares discretos e indiscretos. Parecia que nada tinha acontecido com eles. Entretanto, era só impressão, pois os três estavam na realidade disfarçando, escondendo a todo custo aspirações ocultas, suas mentes hospedavam um confronto inaudível. Seus corações palpitavam sensações vibrantes tentando debelar a inibição sempre recorrente.


Estava, novamente, enfileiradas as tropas, o combate era iminente, de um lado a razão, de outro a emoção, e na faixa intermediária, mil e um pensamentos indecisos, parciais, os elementos híbridos essenciais, refutando o radical maniqueísmo e indicando o sugestivo final aquele inusitado encontro casual.

Adônis não deixara de elogiar a indumentária de Helena, seu vestido de alças branca, ostensivamente transparente, mostrando uma langerie da mesma cor, composta de peças diminutas que marcavam de forma provocante todo o seu corpo.


Estas foram percebidas o tempo todo pelo casal, e mais flagrantemente quando Adônis puxou a cadeira para ela sentar-se, seus olhos se fixaram na formosura da suas nádegas salientes penetrada por ínfima peça rendada. Seu cabelo ainda molhado deixava escorrer de suas costas pequenas gotículas de água que deslizavam por sua pele bronzeada. O seu perfume suave fê-lo suspirar.

A conversa começou a tomar um rumo mais ousado, quando Tália elogiou a beleza da escultura de um corpo nu que estava em cima de um aparador de granito, localizado ao lado da mesa de jantar. Helena agradeceu o gesto de sua convidada e falou a respeito de sua paixão pelas obras de arte, notadamente as relacionadas à era gloriosa da humanidade, como assim definia a renascença italiana, época em que artistas, filósofos, poetas e príncipes se dedicaram a uma causa comum, cada um em suas respectivas áreas, a propiciar uma expressão de perfeição a realidade terrestre.


Disse sentir uma emoção radiante ao adentrar num mundo onde até os mármores frios faziam transbordar sentimentalidade suspirantes, e atingir, suntuoso e elegantemente, uma culminância estética inigualável. Fez comentários com uma fluência típica de uma estudiosa no assunto, mas de forma branda, assimilável por leigos.

Enfatizou com veemência a perfeição de esculturas como a de Moisés, de Baco, de Davi, concebidas pela habilidade prodigiosa do grande escultor da Toscana, depois adotado pelos florentinos, Michelangelo Buonarroti. Falou das obras de Donatello, de Giovanni...

No meio de sua animada explanação, Adônis a indaga a respeito da insistência nessa época de se retratar à mitologia grega, tanto em esculturas como em pinturas. Helena, então, explica-lhe que os mitos criados em torno de deuses e semideuses, no passado, expressavam as virtudes e os vícios do homem, de uma forma alegórica e expressiva. E numa época em que se pensava que o homem atingiria a perfeição pela razão, pelo conhecimento, nada melhor do que os ícones sagrados dos céus da Tessália para vislumbrar tal paraíso.


O belo levado ao êxtase, aos píncaros da admiração humana, se associava a uma libertação, a um afrouxamento da moralidade excessiva, cultuada nos tempos imediatamente anteriores, a chamada idade das trevas (medieval), época onde se condenava o prazer, até o riso, como tão bem retratara Umberto Eco, em “O Nome da Rosa”. Verdadeira blasfêmia para o pensamento de Voltaire , pois achava que se não fosse possível rir, todo homem inteligente acabaria se enforcando.

Tália interfere, educadamente, na explanação de sua anfitriã, e demonstra um interesse especial pela escultura do Baco de Michelangelo, o famoso deus do Vinho. Tinha-o visto, pela primeira vez, num livro sobre História das Artes, e se impressionara com aquela imagem enigmática, segundo sua percepção, com um sátiro agarrado em suas pernas, segurando na mão direita um vaso e na mão esquerda um cacho de uvas e uma pele de tigre.

Helena de pronto se empolgou com a intervenção, respirou um pouco, riu meio disfarçadamente, e comentou já com um ar diferente, rosando sua face - a delatora contumaz do tímido. Disse que este também era conhecido por Dionísio, ou Dioniso, o patrono dos prazeres, que a escultura era guardada num museu em Florença, uma peça feita de um bloco de mármore único, representando uma fusão maravilhosa, por unir à elegância do jovem homem e formas femininas, curvas e carnudas.


Aludiu a observação de Giorgio Vasari que a via como uma imagem hermafrodita, uma surpreendente mistura de dois sexos, docilidade flexível de adolescente e plenitude de formas de mulher. Não deixou de citar a obra clássica de Eurípedes, na qual são descritos os rituais de orgia, onde as bacantes, mulheres tomadas por um êxtase selvagem, sob os auspícios do delírio báquico, se encontravam a cada dois anos, nas florestas cobertas de neves, sumariamente vestidas, pés descalços, empunhando seus tirsos e coroadas com Heras, dilacerando e comendo animais para celebrar as festas em homenagem ao deus do prazer, o senhor da vitalidade agreste. Sendo daí a origem do termo bacanal.

Essas últimas palavras proferidas, no tom e com olhar utilizados por Helena, serviram de estopim para a formação de um clima abrasador, a temperatura corporal dos três se elevara rapidamente, o fatídico impulso foi acionado, a razão estremeceu derrotada, nada mais seguraria as ações vindouras.

Adônis não se controlara durante o passeio mitológico propiciado pelas palavras de Helena, passava o tempo todo à mão nas pernas de sua esposa, tocando-a por cima do lingerie, esta, por outro lado, vez em quando suspirava, mordia os lábios e respirava profundamente. Helena percebia as movimentações e carícias de seus convidados, o que a insuflava cada vez mais no sentido de tomar coragem para agir conforme a natureza dionisíaca, se afastando dos conselhos de Apolo , apesar do medo de se tornar inoportuna, estragando aquela deliciosa situação de fantasia com um toque precioso, ou inoportuno, de realidade.

Tália, sem pensar e assumindo uma postura de ação, pergunta a Helena se é saudável reter um desejo tão intenso em nome da moralidade e das convenções sociais, e, para o espanto de seu marido, exemplifica a questão, criando uma hipótese travestida de realidade pura, palpável, pois, faz o grupo imaginar a situação de ela, sendo heterossexual, estar sentindo atração por sua anfitriã, o que feriria seu modo de conduta pessoal e muito das normas vigentes. Paira, então, um silêncio momentâneo, quebrado somente pela reacomodação dos três nas suas respectivas cadeiras.

Helena, tentando responder luxuriante hipótese, demonstra uma excitação tão perceptível que Tália ameaça recuar na investida, mas nada mais é capaz de parar o que se principiou. Afirma ser possível tal reação, desde que esporádica, não obsessiva e exclusivista, não seria lesbianismo ou perversão, apenas uma sensação inusitada que muitas vezes se originava em alguma fantasia não realizada, guardada sob a proteção e vigília rigorosa do superego.

Adônis já sentindo a incipiência de um clima incontrolável, propõe continuar a conversa em um lugar mais confortável. Helena sugere ouvirem música na sala, esta era muito aconchegante, cheia de sofás, além do que a noite era de lua cheia e a vista de lá era muito bonita. Tália insinua apagarem-se as luzes para que o brilho natural se encarregasse de pratear o lugar. Todos agiam no limite entre a fantasia e a realidade, ora passando para um lado, ora se entregando de todo ao outro.

Helena após colocar uma música instrumental vira-se para Tália e Adônis que estão lhe olhando de forma penetrante, e então se aproveita da situação e senta-se em frente ao casal, abrindo um pouco as pernas, não fala mais nada, simplesmente encarando os dois. Tália que se vestira com uma minúscula saia mostrava boa parte de suas pernas, pegou a mão de seu marido e levou-a até o seu ventre, depois desabotoa camisa dele, e começa a beijá-lo delicadamente no rosto, no peito, lambendo seu pescoço, apalpando seu sexo. Estes se levantam, se encostam e começam a dançar.


Helena fica totalmente tomada por aqueles encontros sensualíssimos de corpos. Não chegava a ser uma transa, mas guardava uma insinuação tão flagrante do ato, chegando a superá-lo em fascínio, em eroticidade.

A situação chegara ao ápice dos instintos, imperava sem oposição a lei das pulsões emocionais, não importava mais nenhum sentimento que não fosse a luxúria, o desprendimento a regras e condutas desprovidas de “pecados”. Mas, ainda, tinha mais porvir, e as chamas se mostraram deveras radiantes, quando Tália, irreconhecível, como uma bacante, sugere uma dança de seu marido com Helena.


Estes se aproximam e, ao iniciar a dança, Adônis delicadamente solta o vestido de sua nova parceira, despindo-a parcialmente, o corpo de Helena se mostra exuberante, uma visão de enlevo que, com certeza, Zeuxis, o grande pintor da Grécia antiga, encontraria inspiração para sua obra . Ele encosta seu rosto no dela, seus corpos semidespidos se tocam, a temperatura de suas peles esquenta, e ele a beija com ardor, sua boca, seu pescoço, seus seios.

Mas Tália, não consegue assistir passiva aquela cena, seu desejo é mais ávido, guloso, e sua completa desinibição faz-na se aproximar dos dois, se encostando atrás de Helena, roçando seus seios nas costas nuas de sua consorte da luxúria. Depois a puxa, virando-a, tomando-a de seu marido, e as duas passam a se beijarem, a se acariciarem, se despirem, em definitivo.

Adônis, totalmente aceso, entende o momento, com a lucidez de um homem no exercício inaudito da devassidão, sem limites, estimulado por um sangue que corria em suas veias, tal larvas de um vulcão em erupção, insaciável, indomável, forjando caminhos, trilhas inéditas de emoção. Afasta-se um pouco, mas muito pouco, a uma distância que o permite apreciar e ao mesmo tempo se envolver, sentir os corpos que se emaranhavam a sua frente, ao seu dispor.


Sentia-se como um favorecido pelos deuses, poucos homens tiveram a oportunidade de apreciar cena tão excitante, a beleza estética levada ao ideal, uma verdadeira obra-prima da natureza, os corpos de duas lindas mulheres pintados pela luz do luar, se tocando, se beijando, suspirando, um ar de lubricidade irretocável invadia o ambiente.

Todos estavam possuídos por um vigor selvagem nunca vivido por nenhum deles, e não havia mais espaço para nenhuma contenção, só o prazer instantâneo valia, só o impulso reinava. Os amantes dominados pela luxúria, tiraram, em definitivo, toda peça de roupa que ainda resistia, se revezavam em todas as variações que o desejo conseguia imaginar, que os corpos poderiam se submeter, não se sabia mais o que era grito, gemido ou sussurros, as únicas testemunhas eram a música, as esculturas, os quadros.


O sexo a três nunca fora tão glorioso como naquela noite, a primeira vez de cada um deles se transformara num banquete majestoso de orgasmo, de gozos ardentes, sentiram a inovadora sensação de se livrarem na íntegra do pudor, e foram assim, por horas a fio, na mais sedutora de todas as noites, no mais erótico de todos os sonhos, até adormecerem juntos, deitados nas almofadas da sala. Os deuses o fizeram viver como deuses, e isso bastava. Que mortal não gostaria de viver ao menos uma vez como os deuses?

O dia raiava insolente e intempestivo, pois precipitava um final que não devia chegar, os corpos ainda entrelaçados, esgotados, exalavam uma energia germinada da afeição carnal, da fulgurância do descompromisso, da paixão irresponsável. O cheiro de suor e sexo, em companhia do divino orvalho da manhã, compunham perfumes irresistíveis, inebriantes. Os encantos pretéritos vividos no ambiente agora sem penumbra da noite, sem o sopro da libido atiçada, marcavam um território que se sabia ter sido dominado pelo prazer.

Helena, então, abre os olhos e aos poucos vai se dando conta do ocorrido, procura alguma peça de roupa para se vestir, está ruborizada de vergonha. Ao seu lado, Tália, ainda dorme como uma deusa, nua, com feições límpidas, típica de quem está feliz e saciada. Adônis não se encontrava mais na sala, o que fez Helena ficar ansiosa, como se temendo sua aparição, na realidade ela não estava sabendo lidar com a situação.


O que era cômico, pois quantas vezes ela sonhara com uma noite de prazer dessas, quantos argumentos construiu de sorte a legitimar banquetes orgiásticos, onde a entrega total fosse a única regra a se respeitar, e o pudor uma fera a se abominar, alcançara seu sonho, chegando ao ápice do deleite, no entanto, agora, sentia-se constrangida, intimidada, querendo se esconder da verdade do dia seguinte.

Decide, então, tomar um banho, quando, de repente, aparece Adônis, já vestido e carregando as malas cumprimenta-a, de forma carinhosa e tranqüila, como que querendo quebrar o gelo e dar um ar de normalidade à situação, o que foi prontamente assimilado por Helena. Era tudo que ela desejava naquele momento, restaurar a normalidade. Ele afirma-a que já está perto da hora de viajarem e precisava acordar Tália.


Mas ao passar, próximo a Helena, ele volta-se para ela dizendo-lhe cordialmente para relaxar, para imaginar que tudo aquilo tinha sido um sonho, um belo e delicioso sonho, ele também tinha acordado assustado, e a melhor maneira de encarar todo aquele acontecimento foi imaginar um ardente sonho erótico, que jamais esqueceria, mas..... Helena se descontrai um pouco, até sorrir, dizendo-lhe que era uma boa idéia, não era hora de devanear, simplesmente propiciar um último conforto a seus apaixonantes hóspedes.

Adônis vai até sua esposa, acordando-a com um leve beijo no rosto, esta se levanta rapidamente, e Helena escuta quando ela diz ao marido que eles tinham feito uma loucura, este, porém, põe a mão em sua boca, carinhosamente, e diz-lhe para ter calma, estava tudo tranqüilo, apanha sua roupa e entrega-lhe. Pede-lhe para tentar ser um pouco rápida, pois o horário do vôo estava muito próximo e eles precisavam partir imediatamente. Ela pergunta, então, por Helena e ele responde-lhe, dizendo que ela tinha ido tomar banho.

Em poucos instantes, o casal está pronto para partir, Helena, enfim, aparece, já mais dona de si, e diz lamentar não ter tido tempo de servi-lhe um café da manhã eles agradecem-na pela estada em seu apartamento, disfarçando, como se nada tivesse acontecido, foi a melhor forma que os três encontraram, rapidamente, para facilitar a despedida. Helena beija-os, e diz-lhes que o seu apartamento sempre estará ao seu dispor (talvez ela não mais).


Tália a abraça, como se grandes amigas, e inesperadamente, diz-lhe, para espanto de seu marido, que tinha sido uma noite maravilhosa, inesquecível, talvez não quisesse repeti-la, no entanto, nada mais importava, ela tinha realizado uma antiga fantasia, e achava que a lembrança sempre seria prazerosa. Helena, simplesmente, balança a cabeça, concordando com ela, pois tendia a chegar à mesma conclusão.

Depois que o casal vai embora, Helena sorri, coça sua testa e sorri levemente, um pouco desnorteada, a espera de alguma resposta para o que vivera....

Ao acordar no dia seguinte, estranhamente, não se sentia tão afetada como no dia anterior, como se tivesse vivido um sonho interessante e deveras prazeroso, mas que, no fundo, nada mudara tanto depois daquela experiência.

Achou agradável a sensação que agora estava a viver, pois fora dormir na noite anterior como se algo muito marcante tivesse acontecido a ponto de mudar sua personalidade, seu jeito, seu comportamento. E na realidade ela conseguia se afastar daquela torrente emocional de uma forma leve e despreocupada, como se dissesse a si mesma, vivi, senti, adorei... E daí, estou de volta a meu antigo mundo, talvez não mais a mesma, mas quem consegue ser o mesmo depois de um dia de vida.


Lembrou-se da famosa assertiva de Heráclito (um homem não se banha no mesmo rio duas vezes, pois ele não é mais o mesmo, nem o rio), sentia na pele isso, mas o incremento que se pensava avassalador já começava a se diluir.

Vez por outra, a experiência era revivida em sua mente, e ela sentia um leve instante de prazer, como se a libido se ensejasse novamente, e cada vez que isso ocorria reforçava sua convicção de como é bom experimentar o inusitado, o diferente, e isso, num sentido mais amplo, pois Helena colhia amparo à sua idéia de que viver sentimentos fortes e alheios ao seu ambiente, ao seu limite social e individual, fortaleceria sua capacidade de discernimento e compreensão do ser, enquanto sua relação com a vida e o mundo que o circunda, que o invade.


É como se o ser humano se robustecesse de vida, ao experimentar, ao vivenciar o estranho. Isso, naturalmente, excluindo-se o grotesco, o que criaria, deste modo, um lastro psíquico, uma inteligência adquirida, para subsidiar o seu andar no mundo, sem bovarismo, sem sonhos que substituam a vontade de sentir na pele, um mergulho no real, na pura e intensa realidade.
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André Agra.

O "campo religioso" e o "sincretismo brasileiro".


Ao se tentar compreender o campo religioso brasileiro na contemporaneidade, é de bom alvitre primeiramente observar a genealogia do processo de colonização e desenvolvimento do Brasil. Pois possivelmente seria a partir dessas raízes históricas que melhor se poderia vislumbrar a instauração do sincretismo religioso nacional, característica de um povo miscigenado, dentro de um processo de "interligação" entre etnias e culturas aparentemente distintas.



Melhor dizendo: um encontro de universos simbólicos diferentes, nos termos usados por Pierre Sanchis.

E nesse encontro de universos simbólicos bastante diferenciados, ao que parece, teriam sido construídas as relações com o transcendente de um modo particular. Nesse sentido, é notável a flexibilidade do brasileiro em se amoldar a credos e crenças, os mais variados.

Sob essa ótica, segundo Maffezoli, o Brasil seria um exemplo típico de país pós-moderno no sentido de uma religiosidade sem purismos. Ou como diria Sanchis, uma religiosidade na qual não se percebe a unidade, nem pluralidade pura, mas pluralismos, sob a forma de um sincretismo.

Ora, desde o desembarque na “terra brasilis”, no século XVI, Portugal teria buscado fazer de sua colônia uma terra Católica, por isso, suas ações no campo político, cultural e social traziam em seu arcabouço ares dessa tendência religiosa, que se digladiava com o protestantismo desencadeado por Lutero.


Nessas circunstâncias, a contra-reforma era-lhe marca indissociável e implacável da aventura portuguesa à época do descobrimento. Rechaçando tudo que porventura se aproximasse da visão luterana. E, por outro lado, adotando uma postura moral mais rígida e extremada com relação ao laxismo dos valores renascentistas. Em especial em Roma. Trento, pois, impõe-se como baluarte imperioso da moral.
Denota-se, com efeito, a tentativa de introduzir nas “novas terras” um catolicismo “puro”, tentativa essa malograda. Não obstante reconhecer-se que a ação pastoral “romanizada” tenha deixado sulcos profundos, eventualmente de caráter anti-sincrético explícito, na sensibilidade popular .

Na realidade, houve uma interação do cristianismo romano com a espiritualidade indígena, e mais tarde uma forte influência da religiosidade africana, não renegando, dentro desse processo histórico, a aceitação posterior do espiritismo, e do próprio protestantismo, como componentes formadores desse caldo religioso-cultural.

Não se pode esquecer, entretanto, que especialmente a religiosidade africana entraria no contexto religioso brasileiro sob uma perspectiva de religião de segunda ordem, inferior ao catolicismo romano, como que distorcendo seus mitos fundantes. Exemplificativa ainda hoje, a figura de Exu e todo um processo de degradação imposto a essa figura mítica do panteão africano.

Entretanto, a miscigenação religiosa se imporia mais fortemente aos costumes “tupiniquins” do que a supostas intenções e “pureza” da Igreja. Sintomático o processo de acomodação promovido pelos jesuítas na catequese e a consagração posterior de um Catolicismo medieval, santeiro.


Não há como não deixar de ressaltar a “operação de violência simbólica contra as religiões afros” impetradas pelas Religiões institucionais no Brasil, e ainda presentes, de certa forma, no campo religioso, configurando uma postura de intolerância, elemento turvo e indesejável de nossa maleável religiosidade.


A despeito dessa violência, teria havido uma espécie de adaptação, em especial, do “catolicismo brasileiro“ aos cultos afros e vice-versa, mediante processo de combinação de entidades (ex: santos/orixás), não discutindo o propósito para tal aparente flexibilidade - se assim se possa chamar.


Do ponto de vista institucional/oficial, a relação se dera de maneira assimétrica e “desvantajosa” mitologicamente, para as religiões da África. Talvez, daí resida a motivação para o processo de. “desincretização” que passa o candomblé, uma tentativa de retorno e revalorização de suas origens.


Aliás, sobre o candomblé é patente ainda o grau de desinformação a respeito da construção de seus mitos e a representação de suas entidades, quase sempre confundidas e mal interpretadas.


Nesse esteio, haveria, hoje, em andamento uma tentativa de alguns movimentos de afrodescententes, dentro do Candomblé, de recuperação de seu passado mitológico – de seus mitos fundantes - buscando assim libertar-se de um sincretismo que de certa forma o tornou quase subserviente às religiões dominantes, em especial ao catolicismo.


Nesses moldes, a Umbanda seria assim uma espécie de religião brasileira paradigmática quanto ao processo sincrético - o “Sincretismo brasileiro”, “em que nunca se chega a uma verdade unificada” - no seu caldo, há aspectos da religião católica, dos cultos afros, do kardecismo e dos cultos indígenas.




Importante acentuar, hodiernamente, nos cultos pentecostais, em especial na Igreja Universal, mesmo de forma negativa, a ritualização de entidades do Candomblé (retorno ao demoníaco), como “Exu” e da “Pomba Gira” , transfigurados como demônios” de sorte a se reforçar a ligação dos fiéis aos seus templos, como se exagerassem o que considera o “mal”, a fim de valorizar sua capacidade de gerar a libertação dessas forças demoníacas e conduzi-los ao “bem”- Deus, ou seja, gera o medo para atrair para o “bem”.


Nesse sentido, no campo religioso brasileiro assiste-se um crescimento perceptível dos movimentos pentecostais e de outras denominações evangélicas, também aumento dos movimentos católicos “carismáticos”, tantos estes quanto aqueles com similitudes quanto à intervenção do “espírito santo” e da remitologilação do demônio.


Um contraponto peremptório às concepções de desencantamento do mundo pregadas outrora, e sob essa visão, o mundo ao invés de desencantar viveria um processo de valorização do sagrado.


Ressalta-se ainda a influência da ideologia inerente à “Teologia da Libertação”, reforçados pelo Concílio Vaticano II, a persistir nos movimentos de base da Igreja Católica, talvez sem tanta força como dantes, principalmente em razão da campanha contrária empreendida pelo último papado.


Para Comblin, a eclesiologia do Vaticano II quis ser uma reação radical contra essas eclesiologias que esquecem completamente a realidade humana e tratam os seres humanos como se fossem objetos nas mãos de um poder hierárquico quase divinizado , ou seja, pode-se apreender os conceitos dessa teologia num sentido de uma mitologização da Igreja como uma instituição voltada realmente para os pobres.


Outra questão importante diz respeito ao surgimento de movimentos religiosos, periféricos às instituições ou até fora delas, e ao lado da pressão crescente em direção a uma racionalização modernizadora,. E dos quais é difícil dizer se os caracteriza o tipo conservador de sincretismo tradicional ou o reencontro com ele através das desarticulações pós-moderrna .


Uma constelação plurivalente como a da Nova Era, o Esoterismo, espécies de religião sem religião, sem dogmas, culto e sistema de crença, apropriando-se de elementos de tradições culturais antagônicas (oriental, hindu, indígena...), associadas ao modelo sincrético pós-moderno e que avançam cada vez mais no contexto nacional, facilitados naturalmente pelo perfil religioso do Brasil de permeabilidade de expressões religiosas diferentes.


Nesse contexto, e considerando a época de “religião institucional forte” instaurada num tipo de pluralismo detectável na modernidade contemporânea, permite-se reconhecer no campo religioso brasileiro, potencialmente sincrético, a instauração de um novo processo de definição de identidade, algo que vai além do contexto religioso institucional ou sob seu domínio.


Por isso, as instituições religiosas estariam desafiadas a se engajarem na construção de uma nova sociedade, compatibilizando os movimentos periféricos e os centrais, deixando fluir e se permear o contexto ideológico-religioso com essas novas formas de expressão, contribuindo, dessa maneira, na construção identitária nacional – o que seria uma prova, essa sim, do pós-modernismo do Brasil.


Ante esse quadro, hoje, o campo religioso não pode ser considerado mais simplesmente o campo das religiões. Extrapolam-se os muros das Igrejas, como se a cultura chamasse às ruas o sentimento religioso, as crenças, suas mitologias para formar um caldo social na elaboração de nova(s) identidade(s) coletiva(s).

Nesse sentido, é notável perceber-se que o papel das instituições religiosas pode ser fundamental no equacionamento pacífico do questionamento contemporâneo das identidades.

Até porque não se pode esconder um certo nível de conflito em gestação no Brasil hodierno com relação às denominações religiosas - claro que à moda brasileira – mas mesmo assim situações essas que devem ser a todo custo inibidas.

Enfim, parece oportuno se indagar se instituições conservadoras como a Igreja Católica - com a maioria dos fiéis no Brasil - conseguiria atuar com sucesso (no sentido de promover a coesão social) nesse momento cultural de construção de valores. Considerando-se sua postura de rigidez demonstrada pela papado anterior e de certa forma pelo atual, em especial no tocante à moral sexual e a sua visão mais conservadora e menos revolucionária num mundo assimétrico e injusto como o nosso.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Falaremos um pouco da aversão à sexualidade (e ao prazer) e do celibato, segundo o cristianismo primitivo e o discurso dos Primeiros Padres. Pretendemos, com isso, identificar certos valores inerentes ao cristianismo emergente os quais influenciariam até hoje os nossos costumes e comportamentos, em particular, a nossa moral sexual.

Primeiro é importante que se diga: o cristianismo por se tornar o centro da devoção religiosa ocidental, passou a ser uma fonte geradora de normas morais. Nesse sentido, a noção de sagrado e profano ficou muito “bem definido", sustentando sua teologia e símbolos a respeito do que seria pecado, do ponto de vista sexual.

Tentemos, pois, contar essa história.

O cristianismo surgiu numa região localizada no Oriente médio, e conhecida como Palestina (o país de Canaã). É ali onde, em meio a uma pequena seita judaica, teria nascido Jesus Cristo, o Messias (um descendente da casa do rei Davi).

Importante destacar que, no início, a pregação dos discípulos de Cristo, também chamados de nazarenos, se baseava em três eixos principais: no «igualitarismo, na assistência social a todos (a caridade) e na salvação post-mortem (depois da morte)». Bem, nos ensina o historiador Paul Veyne.

Mas os nazarenos cultivariam, ainda, a preocupação com a austeridade e a repressão à sexualidade, e exaltavam personagens sociais desprezados na Antiguidade, como as «mulheres sem homens, ou seja, as virgens e as viúvas (Odon Vallet).

A força do cristianismo nascente, entretanto, era restrita, poucos adeptos e muitas perseguições. Só a partir da missão de Paulo, e, posteriormente, com a "conversão" (em 312), de Constantino (Imperador Romano), se inicia, realmente, um processo de ascensão e fortalecimento do cristianismo.

Curioso observar que Constantino antes da "conversão" lutava sob a proteção do Sol Invictus (Mitra). O mitraísmo era a religião mais difundida no império romano à época do nascimento do cristianismo. Sua origem data de 2.000 a. C (na Pérsia).

Apesar de algumas semelhanças entre Mitra e Jesus (nasceram de uma virgem, cearam antes de morrer com seus discípulos e ressuscitaram), Mitra é um deus guerreiro, por isso, talvez, sua popularidade em Roma cuja simbologia se relacionava ao touro, ao sacrifício, ao sangue (não é à toa a paixão dos romanos pela lutas dos gladiadores). Jesus, ao contrário, trazia a mensagem do amor, era o cordeiro (que se deu em sacrifício), o peixe.

Constantino ao trocar, antes de uma batalha, a bandeira de Mitra pela do cristianismo, terminou por tirar a religião dos nazarenos da clandestinidade. Tempos depois, o cristianismo torna-se religião oficial do Império Romano. E Teodósio, em 391, vai mais além, ao proibir os cultos pagãos.

Estaria lançada, assim, uma plataforma para consolidação da Igreja e de seus valores morais. Valores esses que incorporariam muito da cultura pagã (numa espécie de sincretismo moral).

Por isso, não podermos falar em cristianismo puro e nem devemos generalizar o comportamento sexual dos romanos, como é de costume. Em síntese, como já dissemos: Roma não era um templo de prazer sensuais e luxúria sem nenhuma interdição ou tabus.

O que não afasta a possibilidade de apontarmos diferenciações importantes entre o cristianismo e o paganismo, do ponto de vista de moral sexual. Pois essas existiam e eram às vezes bem evidentes.

Cena do seriado Spartacus: sensualidade, nudez e luxúria. Contraste com a austeridade dos cristãos.

Ora, enquanto no círculo dos seguidores de Jesus Cristo haveria uma forte tendência a um controle restritivo do prazer e das sensações relacionadas à carne, bem como o medo com relação à nudez, a renúncia sexual completa para alguns (antecipação do celibato) e uma “severa desaprovação de um segundo casamento.

Entre os cultos pagãos, estaria o conhecido e prestigiado culto a Baco (dioniso), deus do prazer e da sociabilidade. A imagem desse deus se difundiria tanto no império romano dos primeiros séculos que chegaria a superar a de Vênus, deusa do amor e da beleza. O deus das ménades (das bacantes, por isso, o termo bacanal), quase sempre apareceria em meio à embriaguez e com suas adoradoras pouco vestidas e em êxtase (Veyne).

Mas pensemos, mais precisamente, nos primeiros cristãos, reunidos em pequenos grupos nas cidades sob o jugo romano. Uma seita menor no meio do judaísmo, na tentativa de engendrar um processo de construção de sua identidade moral diferenciada.

A teóloga Uta Ranke fala-nos, ainda, do ensinamento de Jesus no sentido de revogar o privilégio do conceito masculino de adultério e de poligamia, uma tentativa de abalar as estruturas pétreas do padrão de dupla-moral. (Dupla-moral: uma moral para os homens e outra para as mulheres, algo ainda observável nos nossos tempos).

De fato, a intenção dos cristãos seria assegurar uma diferença importante em relação aos pagãos, e tentariam isso provavelmente através de uma excepcional disciplina sexual.

Talvez por isso, o entusiasmo moral das comunidades urbanas cristãs e sua vontade em diferenciar-se, tornarem-se mais distintas e coesas em relação ao mundo pagão. Tudo isso se intensificaria com a crença em uma espécie de “fiscalização sagrada”, isto é, um «olhar penetrante de Deus a devassar os recantos da alcova».

Por outro lado, nesse processo de constituição das comunidades primitivas, a vertente feminina seria pouco a pouco sufocada, isso tanto na teologia, como na doutrina e na autoridade da igreja. Maria (a mãe de Jesus) e Madalena, por exemplo, seriam quase “silenciadas” nos Evangelhos Canônicos. E se estabeleceria a autoridade de São Pedro, trazendo a mensagem cristã para o domínio quase exclusivo do Pater (Suely Almeida).

No fundo, um formato de pensamento no qual facilmente poderíamos detectar uma negatividade exaustiva com relação ao prazer sexual e o enfraquecimento do lado feminino nos nazarenos.

Somemos a tudo isso a crença na Parusia. Expliquemos melhor: segundo a filósofa Marilena Chauí, entre os fundamentos dessa antipatia à sexualidade, estaria a crença de que a morte e a ressurreição de Cristo eram sinais de um iminente juízo final. Ocasião em que a imortalidade seria reconquistada. Obviamente seriam dispensáveis as relações sexuais, pois não haveria mais sentido em se perpetuar a espécie humana.

Por consequência, os cristãos tenderiam mais ainda a se afastar de tudo que envolvesse a sexualidade e o sexo, mesmo que fosse para fins procriativos. É nesse sentido que Paulo exaltaria essa escatologia na Primeira Carta aos Coríntios, 7: o tempo já escasseia e os recém-casados devem se concentrar na nova fé e não nas preocupações mundanas (Drury).

Essa tendência de afastamento do prazer (de aversão à carne) ficaria cada vez mais evidente com a influência crescente do gnosticismo e dos neoplatônicos 

Os gnósticos (profundamente pessimista com a vida na terra) pregariam «a abstinência do casamento, da carne e do vinho»; e sobre o corpo, diriam: «um túmulo que carregaríamos conosco».

Invadiriam o pensamento cristão com uma radicalização contra a corporeidade e a matéria num nível muito além do pessimismo sexual dos primeiros nazarenos (Ranke). O corpo passaria a se distinguir (e diferenciar muito) do espírito.

Mas não esqueçamos que o rabinato pregava, segundo nos ensina Peter Brown, «o casamento como critério obrigatório de sabedoria», distanciando-se, assim, dessa aversão ao corpo e de sua sexualidade. Muitos veem ai um indício especulativo sobre a possibilidade de um Jesus casado (no caso, com Maria Madalena).

No entanto, «os dirigentes das comunidades cristãs nos séculos I e II, se orientariam em sentido diametralmente oposto» – um sinal, inclusive, de dominação especificamente masculina.

Nesse sentido, a supressão da sexualidade (uma espécie de antecipação do celibato, que se tornou disciplina obrigatória para os sacerdotes, na Igreja Latina, a partir do século XI), significaria um estado de disponibilidade decidida em relação a Deus, para eles: uma espécie de estado ideal.

Essa tendência anti-sexual e anticonjugal, associada a uma hostilidade flagrante ao prazer, levou alguns homens, como forma de se apresentar como modelo vida cristã, a buscarem a castração física (Ranke).

Orígenes, o mais importante teólogo da Igreja grega, teria se castrado aos dezoito anos. E essas castrações voluntárias teriam chegado ao ponto, que o Imperador Adriano, no século II, decretaria a proibição da inusitada prática (Ranke).

Nessa linha, segundo Jean Delumeau, vários Padres da Igreja ao retomar uma longa tradição neoplatônica, perceberiam a união carnal como responsável por rebaixar o homem à condição de animal. Mais ainda: criariam uma vinculação, entre o sexo e a morte.

São Gregório de Niza (330-395 d. C) escreveria: «A procriação é muito mais um princípio de morte do que de vida para os homens, pois a corruptibilidade começa com a geração. Aqueles que com ela romperam, fixaram para si mesmo, pela virgindade um limite para morte. (Apud Chauí)».

Toda essa degradação da sexualidade teria, então, contribuído para a «ascensão da dominação do homem celibatário na Igreja cristã», especialmente com a consolidação da igreja como instituição, a partir do século III. (Peter Brown).

Mas vale dizermos, esse celibato, em sua maioria ligada a uma abstinência sexual dos cônjuges, apresentaria uma peculiaridade curiosa: não se tratava de uma renúncia excessivamente impressionante.

Os homens da Antiguidade consideram a energia sexual como uma substância volátil, rapidamente esgotada nos calores da juventude. As duas realidades da mortalidade numa sociedade antiga asseguram uma reserva permanente de viúvos sérios, disponíveis desde o início da idade madura e livres para se entregar às alegrias mais públicas do cargo clerical».

Todo esse processo de aversão à carne, típica dos padres da igreja, teria tornado o casal cristão «permeável, ao menos em teoria, às sombrias e graves ideias sobre sexualidade elaboradas por Santo Agostinho» com consequências importantes para os séculos vindouros.

Mas a situação ficaria ainda mais radical com relação ao prazer e a sexualidade. Isso de daria com o surgimento de um movimento religioso chamado de monasticismo, um acontecimento importante para a consolidação da moral cristã dos primeiros séculos.

Esses homens «ávidos de perfeição total» se retiravam para o deserto no intuito de vivenciar sua doutrina purista e se afastar do “mundo”, lugar de perdições e distante dos preceitos de Deus, segundo sua visão religiosa.

Continuaremos... (com os monges do deserto e Santo Agostinho)

Obras que serviram de referência: O pecado e o medo no Ocidente, Jean Delumeau; Santo Agostinho, Peter Brown; A história da Vida de Privada, volumes I e II, Paul Veyne; A negação do feminino, Suely Almeida; A história das Mulheres na Antiguidade, Odon Vallet; Eunuco pelo Reino de Deus, Uta Ranke; e outros