Primeiro é importante que se diga: a prostituição já foi considerada sagrada, segundo alguns historiadores. E o que surpreende nela, segundo Maffesoli, era sua “função agregativa”, ou seja, a capacidade de “juntar” o grupo, de promover a coesão. Além de fortalecer os laços das comunidades antigas, sob uma aura de misticismo (ou de um “orgiasmo sagrado”). Tudo em torno da crença nas Grandes Deusas.
Nesse sentido, o sexo e a espiritualidade comungariam em benefício de um projeto da comunidade.
Mas, precisamos, antes de mais nada, encarar a polêmica sobre a existência ou não de uma Era matriarcal. Uma suposta época em que a mulher detinha (ou compartilhava) a hegemonia política e o poder religioso, sem nenhuma supremacia do homem.
Nessa sociedade idílica, defendem alguns autores, não haveria guerra nem violência sistemática. Nela, se festejava a vida em cultos silvestres (e agrários) para homenagear a deusa natureza e sua força criadora (a fonte da vida: como é o caso da Vênus do paleolítico). Notem que por sí só a mulher é símbolo da vida. É ela que gera e dá a luz. Por isso, sua associação com as divindades geradoras.
Claro que há uma idealização bem evidente nesse pensamento. Mas, assim são construídos os nossos mitos, inclusive os cristãos. (Estamos a usar o termo “mito” no sentido de verdades profundas, embelezadas com metáforas, poesias e simbolismos).
Pois bem. Segundo Rose Muraro, essas sociedades teriam florescido em várias regiões há pelo menos 30.000 a.C. A historiadora faz ainda referência à introdução de um novo modo de produção, o agrícola (em torno de 10.000 a.C) e o estabelecimento da cultura das cidades, tudo isso com estreita relação ao matriarcado.
Era o Tempo das Grandes Deusas, cujo declínio teria acontecido especialmente a partir de 4.000 a.C. Motivadas por invasões de povos guerreiros advindos dos estepes, os quais teriam “introduzido o machismo, a cultura da guerra e a sociedade patriarcal”.
É nesse declínio que se daria o surgimento das religiões abraâmicas (o judaísmo, o islamismo e o cristianismo). Ora, os textos bíblicos mais antigos datam em torno do século V ao I a.C. e em muitos deles há uma mensagem patriarcal bem forte e às vezes não tão amigável à mulher.
O Gênese é prova disso. Não é à toa que “a mulher aparece como duplamente culpada pela queda humana”, pelo menos segundo uma leitura mais tradicional. Além disso, no mito adâmico, a serpente aparece como símbolo do mal. Mas a serpente era símbolo de sabedoria e de regeneração para as Grandes Deusas. Talvez, por isso, a tentativa de trazê-lo para o "lado" do mal.
Mas não entraremos nessa controvérsia, importa-nos examinar, nesse momento, a vida nos Templos erguidos para adoração das Deusas. Eram nesse lugares sagrados nos quais as suas sacerdotisas ofereciam serviços sexuais (pagos). As taxas serviam como uma espécie de oferenda às deusas. Um tributo aos seus “favores sexuais” de conotação divina.
Na Suméria (Oriente Médio), por exemplo, as sacerdotisas da Deusa Inanna, mais tarde chamada de Ishtar, na Mesopotâmia, cultivavam o ritual da prostituição “como forma de ajudar aqueles que procuravam o templo para reencontrar-se, morrer para renascer e dar um novo sentido a vida”.
A própria Ishtar, “a benfazeja”, foi identificada como uma prostituta. E mais: sendo as prostitutas-sacerdotisas membros do templo, considerado centro religioso, político e econômico na Mesopotâmia, o status de prostituta era bastante elevado.
Um dos primeiros poemas mais antigos que se tem notícia no mundo, o Épico de Gilgamesh (em torno de 2.000 a.C), fala da prostituição de uma forma sagrada, bem como exalta seu poder civilizador.
Poderíamos ir multiplicando os exemplos. Mas não podemos deixar, por último, de citar a tentativa da Igreja, no passado, de associar Maria Madalena a figura de uma prostituta (arrependida). E Lot que “oferece suas filhas “virgens” aos habitantes de Sodoma em troca de deixarem em paz os estrangeiros que acolheu em casa (Gênese 19,6)”.
Mas voltemos ao nosso percurso. Os homens buscavam os templos para melhorar as colheitas, os rebanhos, para chover mais (“a chuva fecundadora”). E até para receberem as bênçãos e a graça das deusas visando engravidar suas esposas.
Segundo a historiadora Nickie Roberts, essas mulheres foram consideradas a encarnação terrena da deusa. Eram o “elo vital entre a comunidade e a sua divindade, e isso elas fizeram como sacerdotisas xamânticas”. As Vênus, por exemplo, representam a fertilidade.
Não havia a famosa dualidade neoplatônica tão cara ao cristianismo, ou seja, não havia um distanciamento fundamental entre o espiritual e do sexual. Carne e espírito comungavam com certa harmonia, como parte da natureza. Por isso, tantos rituais de celebração a fertilidade nas mais diversas religiões e mitologias.
Marie Louise von Franz fala-nos das religiões pagãs, originárias dos germânicos e dos celtas, nas quais se cultuavam à Mãe Terra e a outras deusas da natureza. Em muitas dessas festas haveria a prática de orgias sexuais com uma aura de sacralidade. Os carnavais têm muito haver com essas celebrações. E as máscaras venezianas têm certa relação com a vontade de perde-se no todo, abandonando a individualidade.
Por isso, para alguns autores a prostituição sagrada era uma forma de atingir a espiritualidade através da carne. Nesse sentido, Débora F. Lerrer, em seu artigo Sexo Sagrado, nos afirma: “A prostituta sagrada encarnava a deusa, tornando-se responsável pela felicidade sexual”.
Do mesmo modo, os ritos secretos, ligados a tradições pagãs deixaram vestígios da existência de rituais sexuais, como Mistérios de Eleusis, dedicado à deusa Deméter, na Grécia. E ritos outros que se espalharam pela Europa. Todos com a característica de "transcender o indivíduo", como se "o prazer entrasse na esfera da vida cósmica".
Mais curioso ainda é que não só as sacerdotisas arrecadavam tributos para o templo. No culto à Deusa Milita, na Babilônia, por exemplo, pelo menos uma vez na vida todas as mulheres migravam à porta do templo e ofereciam serviços sexuais.
O dinheiro era, então, doado ao templo, como oferenda. Uma taxa dita como justa e devida à Deusa. Detalhe: nenhuma mulher poderia se negar a prestar o serviço.
Na Idade Média as francesas de Savóia, uma vez por ano, se reuniam para visitarem tabernas e se encontrarem com outros homens, com o consentimento dos respectivos maridos. A despeito da questão do pagamento, tal comportamento parece ser uma recorrência da época da prostituição sagrada e dos cultos da fertilidade.
Continuaremos...
Fontes; As prostitutas na história, Nickie Roberts; As prostitutas na Bíblia, Jonathan Kirsch; Feminino e masculino, Rose M. Muraro e Leonardo Boff; A sombra de Dioniso, Michel Maffesoli.
Outras fontes:
http://www.triplov.com/creatio/moreira.htm; http://www.forumnow.com.br/vip/mensagens.asp?forum=15836&topico=2667152