Show do U2 em Milão, 2009.
É possível se falar na existência de alguma relação entre as missas show, as raves e as festas das torcidas? Ou entre uma procissão religiosa e os passeios aos shopping centers?
Essa nos parece ser uma discussão interessante a ser aprofundada. Mas, por enquanto, iremos apenas iniciá-la.
Pois bem. Ao imaginarmos sentimentos caros ao mundo religioso que poderiam ser detectados em grupos e ajuntamentos aparentemente distantes do sagrado, o filósofo contemporâneo Michel Maffesoli é uma referência obrigatória.
Para o filósofo francês, na pós-modernidade, há uma estruturação social a partir da expressão dos sentimentos e das paixões que se manifestam nos diversos encontros cotidianos, tais como as raves, as festas techno, missas shows, ajuntamentos futebolísticos e as procissões dominicais aos centros comerciais. Tudo isso alavancado pela tecnologia (as redes virtuais, e-mail, orkut etc) e por grandes eventos midiáticos.
Ora, no passado, o passeio principal das famílias, aos domingos, era aos templos religiosos (missas, cultos, etc). Talvez, por isso, Saramago chamou os shopping centers atuais de "templos pós-modernos". Um espaço onde se materializa perfeitamente o endeusamento do consumo (símbolo de nosso tempo) e a interação de muitos grupos, de uma forma meio difusa e diversificada.
Observem, por exemplo, num domingo à tarde o que acontece em frente a um shopping center: há uma espécie de procissão adentrando naquele espaço urbano, como outrora se fazia em relação às Igrejas (isso é uma mudança cultural importante, nos parece).
Outra questão interessante é percebermos, nos "encontros religiosos de massa", a intensa emotividade que reina nesses eventos, quase uma catarse grupal (falando-se numa linguagem psicanalítica).
Um "êxtase coletivo" numa intensidade que ultrapassa em muito a razão simples e a possibilidade de se tentar entendê-la de forma estritamente racional, ou mesmo de categorizá-la aos moldes convencionais. Por isso, para nossa discussão, importa olharmos para a força de coesão se realizando nesses "transes pós-modernos" (é algo mágico e diz muito da nossa cultura atual).
Claro, estamos falando de uma espécie de energia emotiva que congrega a massa, unindo-as, segundo um desejo de formar uma comunidade (de afetos e emoções mesmo que passageiras). Como é bom vibrar juntos num estádio de futebol, ou dançar em grupo numa rave ou reverenciar com a massa um cantor ou conjunto musical de nossa preferência. O mesmo diríamos de uma missa show...
Não estamos discutindo o fenômeno religioso em si, suas motivações e efeitos para cada um dos fiéis (isso é um ponto fundamental). É como se a distinção entre os eventos, na superfície, no concreto, se diluisse. Olhar para o fenômeno vida vivida pelo que acontece e não a partir de suposições e filosofias moralistas (do dever ser).
A ideia é tentar intuir um "sentimento de coletividade" (de "pertencer com os outros") em meio a esse tipo de efervescência grupal (musical, religiosa, futebolística), e todo um "vitalismo" dele emanado. Um "pertencer ao grupo" o qual sugere uma "saturação do indivíduo e do individualismo moderno".
Talvez a angústia do ficar só (inundado de um individualismo moderno) esteja estimulando essas aproximações em grupos, em tribos....
Nos interessa, portanto, tentar captar sensações de intensa emotividade em aglomerados profanos e sagrados. Por isso, talvez nem caiba mais fazer uma diferenciação tão estanque entre os termos sagrado e profano.
A separação corpo/espírito, bem/mal, céu/terra, por exemplo, está cedendo lugar a um mundo mais holístico, mas integrado. Mesmo a imperfeição da parte sombria enseja-se como elemento essencial à vida individual e coletiva (ex. a sombra de dionísio cantada por Maffesoli).
Quando falamos em parte sombria estamos abordando aspectos do nosso eu (individual e coletivo) que escondemos, como algo ruim (ex. a nossa incapacidade de nos contermos frente a determinadas situações, jogar para debaixo do tapete o que não seria bem vindo num ambiente mais austero).
Exemplificativa é a nossa relação com a natureza em processo de construção nos tempos atuais. Hoje, a natureza, é-nos (ou está se tornando) sagrada. Provavelmente, assistimos a uma revalorização de antigos cultos à Gaia (a mãe terra), inclusive através dos filmes (Avatar é um exemplo). Estamos percebendo a necessidade de olharmos o mundo como um cosmo integrado, um corpo só.
Esqueçamos, pois, a máxima da era moderna: dominar a natureza e pô-la ao nosso serviço. Precisamos conviver com ela e respeitá-la acima de tudo.
Mas continuemos. As massas têm sim o que falar, essa perspectiva de observação é importante senão cairemos num vazio intelectual e moralista distante do que está realmente acontencendo na vida.
As aglomerações artísticas, as torcidas de futebol, os cultos religiosos de êxtase ao se expressarem em seus encontro afetivos, bem típico das tribos (por exemplo), entram, parece, em sintonia com sentimentos antigos.
Experiências primordiais, em torno de fogueiras, cultos aos deuses pagãos, cultos de fertilidade, sacrifícios, festas de colheitas.
Todos eventos que provocavão um fortalecimento do corpo social, criavam coesão no grupo, sejam entre os celtas, os astecas, os romanos, as tribos primitivas.
Durkheim faz uma referência interessante às festas de tribos australianas. Periodicamente e movidas por um instinto misterioso elas entram em estado de congregação, onde ocorrem excessos chocantes à moral. No entanto, segundo Maffesoli, é nesses momentos de efervescência que a comunidade ratifica o sentimento que tem de si mesma.
Cultos célticos
Talvez tenhamos até dificuldade de encontrarmos uma lógica pura nesse caos orgânico, isso se tentarmos entender esses eventos com um olhar puramente científico (ao modo iluminista), mas se nos deixarmos contaminar por uma visão mais ampla, mais apegada ao fato em si (ao empírico), ao que é e não ao que deveria ser; é, sim, possível compreender parte desses mecanismos de aproximação presentes nessas aglomerações.
Maffesoli nos chama atenção para esse momento, ou seja, não se trata mais de uma história que construo (a minha saga de herói), contratualmente associado a outros indivíduos racionais, mas um mito em que participo em conjunto, com as coletividades que escolho para participar.
Para ele, "apocalipse não significa necessariamente catástrofe"; e justifica: a teatralização de uma espécie de força selvagem (ou um daimon) é uma boa maneira de domesticá-lo, de proteger-se de uma violência que poderia se converter em movimentos totalitários e perigosos (ex. a formação da SS nazista).
Como, então, se falar em individualismo, quando há uma enormidade de pessoas tentando se juntar (virtualmente ou não) nas comunidades orkutinianas, por exemplo? A todo instante mais pessoas buscam destinos comunitários, grupos de interação.
Portanto, o sentimento de pertencer a grupos, sem exclusividade (neotribalismo), é, sim, uma característica importante dos nossos dias. E seus encontros nos denunciam (pelo menos assim parece) semelhanças, na rave, nas missas show, na partida de futebol ou em shows de rock.
É na busca pelo que é "emocionalmente comum a todos" que se pode especular (no bom sentido do termo): "a vida não pode ser reduzida à utilidade". Reduzida a uma ditadura do utilitarismo (ex. alguns gostam de dizer: tudo tem que ter um fim material, lógico, tem que ter alguma finalidade prática para ser de bom tom. Será ?).
Por isso, nossa compreensão nos intimida a especular sobre essas semelhanças, ou seja, "a vontade de ser em grupo", de se juntar em volta de mitos (mito não no sentido de inverdade) e seus ritos.
O pertencer (ou poder pertencer) a mais de uma tribo, a sede de viver o momento... Eventos paroxísticos da pós-modernidade, presentes num show do U2, no show de padre Fábio Melo e na festa techno.
Ref (A sombra dionisíaca, Os tempos das tribos, A república dos sentimentos, de M . Maffesoli)