A montanha sagrada de Salkantay e o caminho inca para Machu Picchu

Salkantay, 2011.

Falaremos nesse texto e no seguinte de nossa aventura na trilha inca de Salkantay (no Andes Peruano) e no santuário de Machu Picchu.

Nossa aventura começa em 15 de Julho (2011). Partimos de Lima em um pequeno avião rumo à Cusco, por volta da 8:00 horas da manhã. Pouco tempo depois, estávamos chegando na antiga capital do império inca.

Cusco é uma cidade impressionante: com um charme especial, um povo notavelmente receptivo, arquitetura (colonial), artesanato e restaurantes maravilhosos, além de Igrejas surpreendentes.  

Chamada de “casa e morada dos deuses”, Cusco, cujo significado em quéchua quer dizer “umbigo do mundo”, era a sede de um Império que se estendia desde o sul da Colômbia até o centro do Chile, e contava com mais de dez milhões de habitantes.

No nosso primeiro dia na cidade, aproveitamos para comprar o que faltava para trilha: frutas secas, remédios, roupas de trakking para o frio e alugamos os sacos de dormir necessários para as noitadas na montanha.  

Vale comentar que decidimos meio no escuro por fazer a Trilha Salkantay. Segundo pudemos observar nos sites, apesar da trilha escolhida ter um percurso maior (em torno de 55 km) em relação à  trilha inca clássica, teríamos, em compensação, a possibilidade de apreciar montanhas nevadas, rios, cachoeiras e selvas.

Isso tudo nos pareceu muito atrativo e foi determinante para a escolha feita.

Pois bem. No dia seguinte, acordamos muito cedo, às 4:00 horas da manhã, às 5:00 chegou o ônibus que nos levaria para o início da trilha. Na viagem, aproveitamos para verificar a proteção dos pés (essa atitude preventiva de proteger os pés contra calos e bolhas foi muito importante).

Chegamos em Mollepata (povoado andino a 2.830 metros de altitude) às 9:30, tomamos um levíssimo café da manha e pudemos conhecer um pouco nosso grupo (bastante eclético, inclusive), tínhamos conosco franceses, uma russa, argentinos e o guia peruano (além da equipe de apoio peruana). Recebemos uma breve orientação do percurso e iniciamos, então, a nossa trilha.

Logo nos primeiros 500 metros, de uma subida íngreme, começamos a sentir o efeito da altitude (fazia exatamente 24 horas que estávamos sob o efeito da altitude). O nosso grupo, desde o começo, ditou um ritmo forte. Tinha uma explicação: a maioria do pessoal tinha experiência nas condições de frio e altitude as quais estivemos submetidos.

Nitidamente nossa força física tinha sido reduzida (consideravelmente reduzida), parecia que o oxigênio fugia-nos a todo instante. Uma sensação nova e inquietante para nós, como muitas outras que viriam.

Disse “parecia” pois na altitude, segundo os especialistas, não se tem menos oxigênio do que ao nível do mar. “O problema está na captação deste oxigênio”, com a alteração gravitacional, o corpo humano sente dificuldade de buscar o oxigênio, vem daí o famoso “Mal da Montanha”.

Sintomas como dores de cabeça, náuseas, lentidão de raciocínio, dores musculares, fadiga e taquicardia são características desse mal tão conhecido dos alpinistas. No nosso caso, sentíamos uma leve dor de cabeça, um pouco de tontura e taquicardia (decorrente da falta de ar).

Começamos a sentir a dificuldade que a trilha nos imporia. As subidas dos dois primeiros dias nos ensinariam muito! Mas não podemos esquecer que nossa aclimatação em Cusco (3.600 metros de altitude) foi insuficiente, passamos menos de 24 horas no local e deveríamos ter descansado mais, isso foi um erro pelo qual tivemos que pagar!

Subimos, no primeiro dia, mais de 900 metros, durante nove horas de caminhada. No meio da tarde, o nosso desgaste era visível e minha esposa chegou a chorar de cansaço, por duas vezes, parecia que não iríamos conseguir dar prosseguimento a nossa aventura.

No afã de buscar forças e estimular minha parceira, tentava encontrar uma forma de incentivá-la ( e a sí próprio!). Cheguei a falar de Nietzsche, do seu amor fati, contei-lhe de sua genialidade e força para extrair  da dor a arte... (hoje damos risadas disso, pois ela quase me matava com o seu olhar...). Deveria ter-lhe falado do além-homem (risos)

Foi a partir daí que tive a nítida sensação de que nossa aventura incluiria uma rica experiência de valores, de emotividade, e de auto-superação...

Era como se tivéssemos que mergulhar em nosso “eu mais íntimo”, convocando-o para nos alimentar de uma emoção restauradora, e transformando essa emoção numa energia capaz de nos impulsionar além de nossa capacidade física circunstancial.

Foi assim que percebi logo cedo: nossa experiência seria um aprendizado para além dos Andes.

Falo especialmente de tentar lidar com a emoção de uma forma salvadora, ou seja, esquecer um pouco a situação objetiva instaurada, fugir de esquemas racionais mais fechados, valorizar o sensível  e sua imensa e imponderável força.

Os pensadores pós-modernos batem muito nessa tecla, as religiões nos fornecem infindáveis exemplos e os mitos não cansam de repetir essas situações. 
   

Melhor dizendo: um quadro "definido" pode sofrer uma alteração significativa em função de uma atitude emotiva. Como se o silogismo aristotélico perdesse um pouco de sua força, de sua ratio...

Trazendo para nossa trilha, eram como se disséssemos: os músculos se alimentam não só do químico, do físico, mas também dos sonhos, da energia envolvida, da vontade de vencer...

E isso não é fácil de quantificar, mas pode ser determinante na conquista de uma trilha dessa natureza (nas condições que estávamos).

Em síntese, a atitude, em muitos casos, se reveste de mais autoridade do que a própria capacidade física.

O melhor atleta (sob a aura de Apolo) pode fraquejar, aniquilar-se ante de um desafio.

E um físico, por mais inapropriado que seja pode cumprir a tarefa, pode superar e vencer um percurso (como se estivesse sendo levado pela força dançante de Dionísio).

E foi assim, num turbilhão de emoções e pensamentos meios loucos (alguns podem até pensar, e com uma certa razão...), que pouco a pouco fomos nos aproximando das montanhas nevadas de Salkantay, Huamantay e Soray.

Seus picos gelados destacavam-se em meio a vales, rios e uma vegetação bem variada. Na verdade, o nosso desgaste físico e emocional tentava inibir, às vezes com sucesso (outras vezes não), a admiração propiciada pela beleza das paisagens (que eram realmente incomuns).

Sentíamos uma espécie de poesia divina emanando da estética das montanhas, do ar misterioso do lugar; um cheiro “colorido” de tempos antigos invadia nossa sensibilidade.

Uma sensibilidade ainda acanhada com a espessa capa de urbanidade a qual nos cobrimos...que nos sufoca... mas que pudemos verdadeiramente nos libertar (E momentos como esses são prova disso!).  

Anoitecia, quando chegamos ao nosso primeiro acampamento, aos pés da montanha nevada de Huamantay, próximo ao majestoso Apu Salkantay (6.264 altitude.).

Aquela seria a nossa noite mais fria (-7º graus). Dormimos em uma pequena cabana, recheados de roupas, casacos, meias e dentro de um saco de dormir.

Como o frio era muito grande e havia um vento insistente, rodearam as pequenas cabanas com uma proteção de plástico (como se fosse uma cabana maior acolhendo as menores).

Antes de dormir, pudemos ainda vislumbra a beleza e limpidez do céu, dava para perceber as poeiras cósmicas, uma imagem inesquecível.

Estar olhando aquele céu e em pleno Andes peruano nos fazia refletir sobre a religiosidade inca e sua estreitíssima relação com a natureza. 

Para os incas, o Sol e a Lua eram como entidades divinas, e por isso “suplicavam suas bençãos, fosse para melhores colheitas, fosse para o êxito em combates com grupos rivais”.

“O deus Sol (Inti) era o deus masculino” (como a maioria das religiões) “e acreditavam que o Rei descendia dele”. Para eles, a “Terra representava o feminino e a Água o masculino que a nutre e complementa para dar vida”.

Importante notarmos: em várias versões de mitologias antigas, "a água era o símbolo da vida", por isso mesmo, associava-o ao sémen do Deus. "Na Grécia, região de terreno árido, a água vinha de cima, pela chuva, e por isso o Céu é o Deus Masculino, no Egito, região de escassez de chuvas, mas fortemente influenciado pelo rio Nilo, o Deus Masculino era a terra".

Outro dado interessante, nos pareceu: é que os incas atribuíam ao deus Sol qualidades espirituais, transmitidas à mente pela mastigação da folha de coca.

Daí as profecias que justificaram a criação de templos sagrados construídos nas encostas íngremes das montanhas andinas”. 

Para nós, todavia, tomar chá de coca, ou mascar a folha, era uma forma de inibir o efeito da altitude.(Os hotéis disponibilizam o chá para os seus hóspedes).

No dia seguinte, acordamos muito cedo (4:30), e uma parte do grupo fez a primeira parte da caminhada da manhã (duas horas) no dorso de mulas. Pudemos admirar as paisagens com mais tranquilidade, mas esse clima foi, em alguns momentos interrompidos.

À medida que se subia, em alguns trechos, as trilhas se estreitava bastante, as mulas vez por outra escorregavam no gelo, instaurava-se um medo real de despencarmos abismos abaixo....foi muita, muita adrenalina..

É muito interessante poder sentir a magia que é subir uma montanha, principalmente, naquelas circunstâncias. Não esqueçamos: para muitos estudiosos de religiões e mitos, a subida à montanha representa “a inspiração divina”, uma busca por contato com Deus, com as divindades, isso é muitas religiões.

Por isso, as peregrinações de transcendência e elevação espiritual são comumente citadas e descritas em mitos, lendas e textos sagrados. No fundo, a montanha é um “símbolo universal do estar mais perto de Deus”.

Foi com essa inspiração que chegamos ao nosso ponto mais alto, 4.660 metros de altitude, entramos pelo lado esquerdo do nevado Huamantay, próximo ao majestoso Apu Salkantay, uma das mais importantes montanhas sagradas da cosmologia inca ( e um pico dito invencível).

O ar parecia muito rarefeito, pelo menos assim era a nossa sensação.

Dificuldades a parte, a beleza do lugar era algo mítico, o que nos impressionou bastante. Para neófitos em trakking em regiões frias e altas, a chegada ao topo foi mais do que uma vitória, foi um momento de deslumbramento sagrado!

Depois de alguns instantes, houve uma pequena reunião para se falar sobre a montanha, sobre a religião e mitos do povo andino. Ouvíamos atentamente e apreciávamos toda aquela beleza ao nosso redor (um momento inesquecível!).

Por isso, antes de iniciarmos nossa descida, fizemos um breve ritual (empilhar  pequenas pedras) em homenagem à La madre tierra (a  Patcha Mama).

É mais fácil compreender, depois de uma caminhada dessas, o apego, a veneração dos incas à natureza.

Importante frisar que o termo Inca não era a “denominação do povo, mas sim do monarca. A organização dos incas era de forma piramidal, sendo o Inca, o chefe supremo, com poderes divinos.”Mas continuemos. Ainda pela manhã, descemos novamente à pé, por mais três horas.

Uma descida um tanto difícil, em razão da existência de muitas rochas e um terreno muitas vezes escorregadio e incerto.

O vale era encantador com uma diversidade de vegetação e de paisagens impressionantes. Do nosso lado direito, a cadeia de montanha gelada, o Andes Peruano, nos observava em seu silêncio majestoso e enigmático.

Fizemos uma parada para almoçar e descansar por 30 minutos (fazia muito frio e caia uma leva neblina).

À tarde caminhamos mais 4 horas e já começamos a nos deparar com uma imensa floresta tropical, cachoeiras e rios. Às vezes fazia calor, e nos descobríamos parcialmente, mas vez por outra o frio nos afetava.

Chegamos muito exaustos, mas tranquilos (aparentemente...). No entanto, antes do jantar, minha esposa teve uma hipoglicemia e desmaiou, foi um momento de tensão, mas graças a Deus tudo acabou bem. Um pouco de açúcar fê-la reanimar. 

No terceiro dia, fizemos um percurso quase todo em florestas (9 a 10 horas), com subidas e descidas alternadas, com um longo abismo ao nosso lado e um extenso rio correndo ao fundo  (nessas circuntâncias, a caminhada melhorou muito, clima mais quente e descendo montanhas).

Detalhe, foi no terceiro acampamento (em Santa Tereza), que tivemos a oportunidade de tomarmos o nosso primeiro banho.

Fomos ainda a uma fonte de águas termais, um alívio para o corpo, se despir de todas aquelas roupas pesadas e cair em águas vulcânicas, uma sensação muito agradável....

Os carregadores não mais nos acompanharam, e as dores nas costas incomodaram um pouco.

Só imaginávamos a chegada em Águas Calientes, dormiríamos em um Hotel. Nunca pensei em desejar tanto uma cama confortável e um banheiro limpo!

Mas viriam ainda grandes emoções pela frente, e arriscaria dizer: viveríamos uma espécie de coroamento epifânico de nossa aventura, a chegada a Machu Picchu .......

(continuaremos no próximo texto com a chegada a Machu Picchu)