terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Razão e Emoção: a luta de Dionísio e Apolo na Pós-modernidade.



O conceito de pós-modernidade  traz em suas entrâncias uma interessante discussão a respeito da (re)valorização de atributos em torno da emoção, da imagem e da afetividade (pensamos a pós-modernidade a partir do ano revolucionário de 1968).

Esses valores, agora em ascensão, foram por muito tempo  “esquecidos” (ou quase esquecidos) e também pouco considerados quando se tentava compreender o social.

No fundo, tudo que se relacionava à imaginação, aos mitos (tratados como fantasias) e ao subjetivo deveria ser forçosamente “racionalizado” (reduzido a um dado material), diminuído o seu valor ou simplesmente excluído do processo de compreensão.


O tecnicismo científico na realidade tentou impor, com arrogância, suas leis universais, sua lógica (como se suas leis não se baseassem também em crenças!). Restando à emoção (ao subjetivo) se contentar com as “trivialidades” da vida.




A emoção seria quase um sinônimo de fraqueza. O imaginário um sentimento infantil e a própria crença em Deus algo a se perder no tempo. 



A religiosidade como uma experiência individual abstrata, subjetiva, estaria fadada  ao desaparecimento, segundo o pensamento os soberanos da razão materialista.

Nietzsche chegou a afirmar a morte de Deus. Freud, apesar de valorizar a emoção e a imagem, pretendia racionalizar ao extremo a psique humana. E Marx idealizou uma sociedade perfeita sob a autoridade de um planejamento racional impecável. Estamos citando os três pensadores mais influentes do século XX.

Nesse contexto, não haveria um lugar merecido para o subjetivo em si, para o abstrato, exceto, na arte.


Era como se Dionísio (deus do irracional, da emoção, do vinho e das orgias) tivesse sido forçado a adormecer no tempo, permitindo a consagração do reinado de Apolo (deus da razão).

Grosso modo (e sem tanto rigor histórico), essa filosofia de pensamento se estabeleceu (e ainda é muito forte) desde a Renascença até meados do século XX e foi a base da sociedade ocidental moderna.

Um pensamento que apostou num progresso linear da história (haveria um progresso contínuo das sociedades até a formação de espécie de sociedade perfeita) e no domínio da natureza pela ciência.


Uma sociedade plenamente laicizada, afastada da religião e de seus mitos, assim sonharam os revolucionários franceses e os socialistas utópicos.

O termo “mito”, inclusive, se tornou sinônimo de inverdade, algo ainda presente em nossos dias.

Não precisamos de tanto esforço para "desmascarar" esse sonho “encantado” da razão.

Ora, na nossa sociedade, ainda persistem injustiças abismais, a fome impera em muitas regiões do mundo, ferimos gravemente a natureza e as nossas metrópoles são muitas vezes insuportáveis.

Em suma, o futuro não aconteceu como fora pregado. As promessas não se realizaram plenamente, longe disso.




Enfim, as duas grandes Guerras Mundiais abalaram "definitivamente" esse “formato” de pensamento e minaram as crenças na razão como formadora de uma sociedade perfeita.



Resulta, ainda, desse processo (baseado numa moral do dever-ser) a consagração do espectro do individualismo moderno. Com isso, estabeleceu-se uma crise da solidão (a tortura existencialista de nossos tempos).




Uma insegurança com o futuro atroz (talvez por isso se busque hoje viver o presente com tanta intensidade) e muito mais.

Era como se tivéssemos perdido a confiança nas grandes promessas, nos grandes sistemas (incluindo-se a Igreja e o Estado). As instituições tradicionais despertam suspeitas nos jovens.



Para pensadores pós-modernos como Edgar Morin, Gaston Bachelard e Michel Maffesoli esses são sinais claros de esgotamento desse modelo de pensamento (cartesiano-iluminista).


Do ponto de vista religioso. Se, por um lado, teria havido uma espécie de esvaziamento das Igrejas (na Europa, isso é perceptível). Por outro, nas últimas três décadas dos séculos XX, a um ressurgimento de movimentos religiosos, os neopentencostais (incluindo-se os carismáticos) e a Nova Era demonstram bem isso.


Mas observem que esses movimentos são bem mais emotivos do que teológicos, ou seja, mais emoção do que razão. Compare, por exemplo, as missas rezadas em latim com as missas atuais ou com os shows de Padre Fábio Melo. O mesmo se dá nos segmentos evangélicos.


O mito está sendo novamente valorizado (vejam os filmes, os livros: isso é bem claro), o mesmo acontece com o imaginário e o coletivo (os eventos de massa são prova disso).


O próprio individualismo moderno vê-se abalado com essa vontade se unir, de juntar-se (ex. as Raves, as missas shows, os eventos esportivos, as redes sociais, orkut, facebook etc).

Mas nada disso significa pensar-se na morte da razão, ao contrário, Mafessoli, por exemplo, fala em uma razão que se torne mais sensível e menos autoritária.

Por isso, apesar de vivermos um suposto tempo dionisíaco (de intensas emoções) a razão apolínea tem seu espaço e vez. E isso nos parece inquestionável....

(No próximo texto abordaremos esse conflito Dionísio versus Apolo em termos de moral sexual, do feminino e da Igreja Católica.)





Referências: Michel Maffesoli, Gilbert Durand, Gaston Bachelard e outros.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O amor (Eros) e o sexo (Afrodite): dramas da pós-modernidade.


Tentaremos discutir o suposto fenômeno contemporâneo de  enfraquecimento do amor (Eros) e a valorização da cultura do prazer erótico, melhor, do sexo.

Antes de tudo, é importante que se diga: a sexualidade vem sofrendo significativas transformações no âmbito sociocultural, em particular no tocante à moral sexual da mulher pós-moderna (discutimos isso em textos passados).
 


Além disso, assistimos a elaboração de uma nova “ordem moral”, sob uma perspectiva de arrumação social na qual a busca obsessiva pelo “prazer erótico”, hoje cultuado e glorificado, tem uma relação muito estreita com o ímpeto consumista vivido no Ocidente.

No fundo, era como se houvesse uma “subjugação do sexo ao comercial”. E isso é bem nítido na “invasão de imagens sexuais que aparecerem em quase toda parte no mercado, como uma espécie de empreendimento comercial gigantesco”. (Os filmes são bons exemplos disso).

( Entre lençóis, um drama no qual todas as cenas são gravadas em um motel)


Mas alertamos: tal situação não deixa de ser um contrassenso à pregação dos anos áureos da rebeldia (1968), uma espécie de ano simbólico para as transformações morais que viriam a marcar a pós-modernidade.

O movimento Hippie, por exemplo, ao defender a liberação sexual o fazia num sentido de exaltar “valores humanístico”. As feministas, ao seu modo, lutavam para libertar o “corpo” da mulher dos grilhões impostos por uma sociedade conservadora e machista.


Não imaginavam, tanto um como outro, o surgimento (logo nas décadas seguintes) de uma nova forma de submissão que atingiria  em cheio a mulher. Uma submissão relacionada, principalmente, à "estética" e a "ditadura do prazer".  

Isso não significa, obviamente, que a mulher não tenha se beneficiado de suas conquistas, em matéria de moral sexual. Destacaríamos por ora o fato de a mulher passar a ter o domínio de seu corpo e de seu prazer, sem tantos tabus e/ou pressões sociais!

Algo fundamental para uma sociedade que se diz justa, e um importante contraponto aos modelos autoritários, criados por uma sociedade androcêntrica (centrada no homem) e profundamente sexista. Duas características culturais do Ocidente em fase de esgotamento tardio.


Estabelecidas, então, essas ideais iniciais, passemos a nossa discussão central, ou seja, há realmente um cisão entre o sexo e o amor

Tentaremos usar os mitos para respaldar nossa análise. 



Nesse sentido, ousaríamos fazer duas perguntas: 1) estariam as flechas de Eros (deus do amor) ou as flores de Kãma (deus do amor indiano) em desuso, aposentadas?  2) a busca do "sexo pós-moderno" é, em resumo, uma fuga do amor, de Eros?

Situaremo-nos em discordância respeitosa  a essa tendência de pensamento, segundo a qual haveria esse afastamento crescente e abismal entre o amor e o sexo.

Preferimos crer na (re)adaptação dos encantos divinos do Eros às circunstâncias culturais. Melhor dizendo, se as serenatas, os buquêres de flores, as cartas de amor deixaram de "existir", não significa que os e-mail, os torpedos, as intervenções nas redes sociais, as novas abordagens, também, não possam exercer essas funções amorosas. E o fazem! O amor é imprevisível e às vezes nas cenas mais abstratas ele se corporifica, faz-se refletir como imagem e sentimento.



 Pensemos, por exemplo, em Matrix - possivelmente um símbolo formador de mitos de nossos tempos.

Pois bem. A força do amor de Trinity (psiquê) e sua dedicação, ao seu amado, Neo, fez ele renascer. Poderíamos dizer que Romeu e Julieta ou Tristão e Isolda se amam mais do que o casal Neo e Trinity?

Ora, os mitos se tocam! O passado e o presente futurista convergem, cada um a sua maneira, mas denotando uma essência comum (a força do Eros). Sob esse ponto de vista, o Olimpo (a casa dos deuses gregos) e o filme Matrix estariam bem mais próximos do que imaginamos.
 
Concentremo-nos, então, nessa "força do amor":

“Eros nasce sob o signo da eterna beleza”, por isso “vive a sua procura eternamente”, ou seja, busca o tempo todo o “belo” (no outro ou eu projetado).

Um belo que não se resume à estética (física), pois ele tem desejo de mais, das qualidades do amado, por exemplo, sejam elas reais ou idealizadas.
 

Além disso, segundo algumas narrativas mitológicas, o amor (Eros) é poderoso em recursos (herança de seu pai, Poro). Sabe, no entanto, que não tem nada garantido (os amantes convivem com essa incerteza). Mas, por ter essa consciência, ele “quer muito”, e luta incansavelmente por isso (lembrem-se da luta de Trinity por Neo ou de Abelardo por Heloísa).

Por outro lado, de sua mãe (Pênia, a pobreza), o Eros (o amor) herdou a penúria. Sabedor disso, “quer sair de si e aspira por saber, por beleza e fecundidade”, e tenta fazê-lo a todo custo.

Pois bem. O amor (como sentimento humano) traz em si muito disso, ou seja, ele é ávido, parece sempre com muita sede e fome de desejo. E tem força (potencial) suficiente para desejar a totalidade do outro, a sua dedicação, o seu corpo, sua alma...


Mas também é ciente da dor de não ter nada (a pobreza) e torna-se, muitas vezes, possessivo e até deveras irracional (a insegurança lhe atormenta).
Difícil não reconhecermos esses sentimentos decantados nos mitos em nossa sociedade, em nossas mentes, seja hoje, seja no passado mais longínquo. O mito faz-se vida! E vida tem haver com amor.

Por isso, não teríamos dúvidas em afirmar: Eros não morreu! (mesmo o Eros romântino, e não estamos falando rigorosamente do amor romântido do século XIX).
 
Parece mais que ele está se disfarçando, nas fantasias virtuais, na volúpia pelo “tudo”, na inflação de imagens, na insegurança de nossos tempos. Aqui e ali, ele deixa rastros claros.

O desejo erótico não deixa de ser  seu delator, a vontade de ser grupo tem seu cheiro; as pessoas procuram hoje se unirem em redes, em tribos, em grupos. Há uma força de coesão dionísiaca nisso tudo que tem também a cara de Eros

 
Mas para não parecermos tão tendiosos, citaremos alguns argumentos em contrário a nossa argumentação, vejamos:
 
Então, para muitos estudiosos do assunto, o amor (O Eros romântico) parece cada vez mais raro. Para eles, era como se as pessoas se unissem “às outras mais por uma busca sexual e por um alívio de tensão, gerando vários tipos de amores, que nada se parecem com o amor romântico.”
 
Uma postura radical? Sim! Mas ela tem também muitas verdades.

Por exemplo, impressiona a quantidade de casamentos e uniões de poucos anos (entre pessoas jovens), nos quais se percebe uma dilaceração da intimidade, da “emoção romântica”.

Jovens casais vivendo relacionamentos nos quais o sexo, apaixonado e intenso, é uma figura quase ausente (fictícia), ou seja, a atividade sexual (erótica, no sentido do Eros) praticamente não existe.

Cria-se uma cela onde a solidão do "um" reina e a esperança do "dois" tem dificuldades de penetrar. O colorido do amor se torna opaco.
 

Parece não haver tempo suficiente para se amadurecer a sexualidade do casal. Ou tudo se desenvolve rapidamente, ou senão abre-se um imenso campo para o desânimo, ao desinteresse mútuo.

Em resumo, começa-se um relacionamento já se antevendo a possibilidade de se buscar um outro, e outro....( como se diz: “a fila anda”).


Outro bom exemplo dessa ideia é o chamado sexo casual. É comum, hoje em dia, encontrarem-se mulheres em busca de uma “relação passageira” com fins exclusivos de prazer sexual.

Sem nenhuma intenção de construir um compromisso sério, simplesmente para se divertir (o que ao meu ver á legítimo, mas essa não é a questão!).


O cotidiano está cheio de testemunhos de mulheres as quais pronunciam sem medo: não faço tanta questão de “fazer amor” com meu marido, algumas vezes até dizem: prefiro comprar uma roupa, ou ir a um passeio, “sair com as amigas”, mergulhar nas redes sócias, “fazer sexo virtual” etc.


Não que tudo isso não existisse no passado, mas hoje com a liberdade e igualdade nas relações tais situações são paradoxais, parecem entranhas. Em tese, esperava-se mais das relações.




A ausência da intimidade, no sentido de se buscar a construção de uma relação duradoura (palavra em desuso hoje) e um amadurecimento da vida sexual cada vez mais íntima e prazerosa, simplesmente não acontece. Desiste-se já no início, ou leva-se a relação por inércia.



Há casos de mulheres as quais sua intimidade é mais discutida com seus “parceiros virtuais” do que com o seu próprio companheiro.

Claro que o sexo de hoje por ser mitificado e massificado (via televisão, internet, filmes..), tende a exibir uma imagem de um sexo muito intenso fisicamente, quase acrobático e sem tantas regras pudicas. Um reino de fantasias, para muitos, não vivenciado em casa.


Isso causaria, a nosso ver, desequilíbrios emocionais e inseguranças, com todas as suas consequências em termos de impotência sexual, frigidez, desânimo com o parceiro e até mais um estímulo à infidelidade.


Junte-se a isso o argumento de autores mais radicais, para os quais o Eros perde o seu valor originário e agrega-se apenas ao desejo sexual. Nesse aspecto, se instauraria um cenário de separação entre o amor e o sexo, pelo menos dentro de relações mais estáveis.

No entanto, volto a minha argumentação inicial, e faço-o crendo que por trás dessa aparente cisão entre o sexo e o amor, ainda guardamos uma espécie de tendência humana nata (um arquétipo, talvez) para amar.
 

Os mitos não mentem! Era como se estivéssemos parecendo se distanciar do Eros (do Amor), mas ao mesmo tempo o fizéssemos sem poder negar a sua existência impregnada ao nosso ser.

Uma contradição? Uma visão muito romântica da vida de Eros? É possível. Não descartamos essa possibilidade.

No mundo dos sentimentos e das sensibilidades, a razão e sua arrogante lógica tem lá suas limitações.


E convenhamos: mesmo do ponto de vista "estritamente sexual", difícil imaginar uma relação só corpo, pelo menos em regra geral.



Pensem bem: havendo algum tipo de atração entre corpos, há a possibilidade de se estabeler algum tipo de sentimentalidade (o mínimo que seja).

Quando dizemos: a "carne fala", "sente", estamos também usando a linguagem do Eros. E é difícil provar em contrário!


E por mais que se diga: "o amor está morrendo", "se faz sexo sem nenhum sentimento", "vale só o prazer do momento", prefiro a poesia atualíssima do gênio inglês, Shakespeare:

 (...)

O amor não se transforma de hora em hora,

Antes se afirma para a eternidade.

Se isso é falso, e que é falso alguém provou,

Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.


Fontes:

A sombra de Dionísio, Michel Maffesoli.

http://www.frb.br/ciente/PSI/PSI.BATISTA.etal.F2%20.pdf2 (MAY, Rollo. Eros e repressão: amor e vontade. Petrópolis: Vozes, 1973).

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade. São Paulo: Editora Unesp.
 http://www.istoe.com.br/reportagens/44777_9+MITOS+SOBRE+O+AMOR

RAY, Rollo. Eros e repressão: amor e vontade.

http://www.humanitates.ucb.br/3/eros.htm

http://mulher.terra.com.br/interna/0,,OI1472286-EI4788,00-Mulheres+tambem+apostam+no+sexo+sem+amor.html

Falando de Shakespeare, Bárbara Heliodora.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O "culto ao corpo" e o "prazer estético": uma forma de "religião" pós-moderna?


 
Há poucos dias atrás, tive uma conversa com minha filha de onze anos e suas amigas de escola. Detalhe: estavam elas fazendo um trabalho sobre Afrodite (deusa do amor, do sexo e da beleza corporal). E na escolha das imagens para o trabalho, elas excluíram a Vênus (Afrodite em Latim) pintada por Bouguereau (The Birth of Venus), um marco da beleza ocidental.

Surpreso, perguntei-as: Por que essa não? A resposta foi simples e curta: ela é meio gorda, não é bonita!

Imediatamente veio a minha mente: talvez elas estejam me dizendo que a Vênus de Bouguereau não tem a barriga “malhada”, os seus seios não são “ressaltados” e as suas pernas não têm definições musculares evidentes! Traços característicos da beleza aclamados nos nossos dias.

Tentei-as explicá-las que a beleza é um conceito temporal, isto é, cada época elabora um modelo de beleza próprio. E esse modelo termina por ser endeusado, adotado como um parâmetro estético universal, como se fosse para todos os tempos (o que não é verdade!).

                                                       A beleza feminina segundo Rubens.

Nesse situação, o que a princípio poderia ser apresentado como um paradoxo, ou seja, não considerar belodeusa da beleza, na realidade, naquela "circunstância" não o era. Pelo menos não parecia ser.



Ora, a noção de beleza feminina hoje cultuada e massificada pela mídia (televisão, filmes, revistas etc) é muito diferente do padrão exposto no referido quadro.


Por outro lado, também é evidente que o padrão atual de beleza tem íntima relação com o culto ao corpo (e todo um narcisismo envolvido) e com o prazer estético. E isso é um ponto fundamental a nossa discussão.

Narciso se apaixounou por sua imagem.

Mas alertemos: o culto ao corpo não é um fenômeno exclusivo de nossos tempos.

Os gregos, por exemplo, também cultuavam o corpo e iam as academias (Gymnasium). Sócrates pregava a prática de atividades físicas. Platão era conhecido pela largura de seus ombros (platlys) etc.


Diferença basilar: os gregos valorizavam de “igual” modo a beleza do pensamento, da mente humana e o amor pelo conhecimento (a filosofia). Um pensamento “traduzido na frase “mens sana in corpore sano” (mente saudável em corpo são)”. Em resumo, havia uma perspectiva de complementaridade entre o intelecto e beleza física. Convenhamos, o que nem sempre é buscado hoje em dia!

Quanto ao corpo da mulher, em particular, não obstante o androcentrismo grego, também é possível se identificar corpos de mulheres com físico atlético, como é o caso de Atalanta (mitologia grega). As amazonas também seriam exemplos de corpos trabalhados (musculosos).  


Na República, Platão prescrevia exercícios físicos para os meninos e as meninas, uma condição essencial para a educação e a formação dos governante-filósofos.

Mas voltemos aos nossos dias, para tentar compreender melhor  o fenômeno "culto ao corpo", especialmente de alguns aspectos escondidos nas sombras dessa intensa marca da pós-modernidade.


E o que primeiro salta aos nossos olhos é imposição às mulheres de um padrão estético extremamente rigoroso e idealizado. Alguns já o chamaram de “ditadura da estética”, designação bem apropriada, nos parece.

Por consequência, instaura-se uma corrida “louca” para transformar o físico, em busca da “perfeição”. Uma busca por um modelo estético inalcançável, pelo menos para a grande maioria.


Nesse sentido, o "corpo perfeito" torna-se assim uma obsessão global e pressuposto à felicidade, ou seja, a estética e o prazer momentâneo se convertem em ingredientes obrigatórios à felicidade dos indivíduos.

E essa é uma “oração” contemporânea das mais “recitadas”, a qual conclama os fiéis a exaltarem o triunfo da "carne", no seu sentido estético-corporal (alerta: não estamos aqui reeditando e revalorizando a dualidade carne-espírito tão caro ao cristianismo medieval).

Porém, como (quase) tudo tem “seu” preço. Esse tipo de obsessão pela estética humana termina por provocar patologias sérias em muita gente.

Começam, assim, a aparecer doenças como “anorexia, bulimia e vigorexia (transtorno decorrente da prática de exercícios físicos em excesso) (...). Ou seja,”muitos colocam suas vidas em risco, consumindo remédios para emagrecer e anabolizantes, ou até mesmo fazendo cirurgias desnecessárias."




Nesses termos, poderíamos perceber ainda o culto ao corpo como uma espécie de religião, com suas crenças, mitos, penitências, milagres (estéticos), templos (academias) e discípulos fervorosos.

Uma dogmática alimentada por uma cultura de consumo, embasada na comunicação visual e no body image (imagem do corpo). É ela que sacraliza a “carne”, endeusa o “corpo perfeito” e prega a “juventude eterna”.

O sociólogo francês Michel Maffesoli, ao desenvolver sua ideia de corporeidade, resume bem esse drama atual: “os corpos são social e culturalmente construídos para serem vistos por outrem – na publicidade, na moda, na mídia e em todas as esferas da sociedade – isto é, o corpo é “teatralizado” para ser exibido em espetáculo, engendrando comunicação e satisfação visual”.


Em alguns cultos religiosos isso também pode ser observado: por exemplo, nos shows religiosos do Padre Fábio Melo, há uma exaltação do seu corpo (percebam sua vestimenta). O religioso e o fetiche do corpo se misturam num evento, em tese com fins espirituais.

Notem, por outro lado, as promessas milagrosas implícitas nas propagandas de cirurgia plástica, do uso do botox, anabolizantes e na própria indústria de cosméticos, todas bem representativas dessa sede por uma interferência “mágica” no corpo.

E mais: a tríade abençoada pela mídia (beleza-saúde-juventude) torna-se quase a meta sagrada. Por isso, “as mulheres, mais e mais, são empurradas a identificar a beleza de seus corpos com juventude. “Instaura-se a tirania da perfeição física (magras, belas e turbinadas)”.

O "corpo perfeito" é esculpido a partir de uma idealização encantada, uma "obra de pigmaleão". Esse personagem da mitologia grega ao tentar esculpir a  mulher perfeita, ideal, termina por se apaixonar por sua obra prima. Depois sua obra (a bela Galateia) torna-se viva através de uma interferência (milagrosa ou mágica) de Afrodite (nossa deusa da beleza).


Essa narrativa parece um pouco com a nossa sociedade atual: criamos um modelo ideal de beleza (o esculpimos) e ao nos apaixonarmos por esse modelo, rogamos a "interferência milagrosa" para que esse modelo ganhe vida nas ruas, para podermos adorá-lo (uma espécie de efeito pigmaleão social).

Talvez por isso a historiadora Mary Del Priori radicalize ao falar de um aumento assustador do “número de mulheres que optam pela imagem da Barbie americana, dona de volumosos seios de plástico, cabeleiras louras falsas e lábios de Pato Donald”.


Outra questão interessante, abordada por alguns pensadores contemporâneos, diz respeito à existência de uma contradição crítica para mulher pós-moderna. Pois, se de um lado, a mulher conseguiu ter, enfim, a posse e o controle de seu corpo. Por outro lado, esse mesma mulher tornou-se submissa à tríade da "perfeição física". Libertou-se sexualmente e se escravizou esteticamente.


Era como se “o físico, os sentidos e a alma” se massificassem e diluíssem para atender a “ditadura de idealização da beleza".

Enfim, o culto ao corpo e ao prazer estético nos leva a pensar e crer numa felicidade associada à imagem da juventude e “corpo perfeito”. Essa é a nossa “camisa de força” culturas. Como sobreviver a ela e tentar criar caminhos alternativos fora de suas determinações inquisitoriais, é uma questão interessante e urgente a se pensar....
 
Continuaremos........



Fontes e bibliografia:
http://www.minosoft.com.br/mirela/download/o_culto_ao_corpo.pdf
http://www.itaucultural.org.br/educacao/download/mary.doc
http://www.efdeportes.com/efd9/anap.htm


http://www.metodista.br/cidadania/numero-59/a-sociedade-do-culto-ao-corpo-perfeito/

Livros: A história do Corpo, A história das Mulheres no Brasil, História das mulheres.