quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O "culto ao corpo" e o "prazer estético": uma forma de "religião" pós-moderna?


 
Há poucos dias atrás, tive uma conversa com minha filha de onze anos e suas amigas de escola. Detalhe: estavam elas fazendo um trabalho sobre Afrodite (deusa do amor, do sexo e da beleza corporal). E na escolha das imagens para o trabalho, elas excluíram a Vênus (Afrodite em Latim) pintada por Bouguereau (The Birth of Venus), um marco da beleza ocidental.

Surpreso, perguntei-as: Por que essa não? A resposta foi simples e curta: ela é meio gorda, não é bonita!

Imediatamente veio a minha mente: talvez elas estejam me dizendo que a Vênus de Bouguereau não tem a barriga “malhada”, os seus seios não são “ressaltados” e as suas pernas não têm definições musculares evidentes! Traços característicos da beleza aclamados nos nossos dias.

Tentei-as explicá-las que a beleza é um conceito temporal, isto é, cada época elabora um modelo de beleza próprio. E esse modelo termina por ser endeusado, adotado como um parâmetro estético universal, como se fosse para todos os tempos (o que não é verdade!).

                                                       A beleza feminina segundo Rubens.

Nesse situação, o que a princípio poderia ser apresentado como um paradoxo, ou seja, não considerar belodeusa da beleza, na realidade, naquela "circunstância" não o era. Pelo menos não parecia ser.



Ora, a noção de beleza feminina hoje cultuada e massificada pela mídia (televisão, filmes, revistas etc) é muito diferente do padrão exposto no referido quadro.


Por outro lado, também é evidente que o padrão atual de beleza tem íntima relação com o culto ao corpo (e todo um narcisismo envolvido) e com o prazer estético. E isso é um ponto fundamental a nossa discussão.

Narciso se apaixounou por sua imagem.

Mas alertemos: o culto ao corpo não é um fenômeno exclusivo de nossos tempos.

Os gregos, por exemplo, também cultuavam o corpo e iam as academias (Gymnasium). Sócrates pregava a prática de atividades físicas. Platão era conhecido pela largura de seus ombros (platlys) etc.


Diferença basilar: os gregos valorizavam de “igual” modo a beleza do pensamento, da mente humana e o amor pelo conhecimento (a filosofia). Um pensamento “traduzido na frase “mens sana in corpore sano” (mente saudável em corpo são)”. Em resumo, havia uma perspectiva de complementaridade entre o intelecto e beleza física. Convenhamos, o que nem sempre é buscado hoje em dia!

Quanto ao corpo da mulher, em particular, não obstante o androcentrismo grego, também é possível se identificar corpos de mulheres com físico atlético, como é o caso de Atalanta (mitologia grega). As amazonas também seriam exemplos de corpos trabalhados (musculosos).  


Na República, Platão prescrevia exercícios físicos para os meninos e as meninas, uma condição essencial para a educação e a formação dos governante-filósofos.

Mas voltemos aos nossos dias, para tentar compreender melhor  o fenômeno "culto ao corpo", especialmente de alguns aspectos escondidos nas sombras dessa intensa marca da pós-modernidade.


E o que primeiro salta aos nossos olhos é imposição às mulheres de um padrão estético extremamente rigoroso e idealizado. Alguns já o chamaram de “ditadura da estética”, designação bem apropriada, nos parece.

Por consequência, instaura-se uma corrida “louca” para transformar o físico, em busca da “perfeição”. Uma busca por um modelo estético inalcançável, pelo menos para a grande maioria.


Nesse sentido, o "corpo perfeito" torna-se assim uma obsessão global e pressuposto à felicidade, ou seja, a estética e o prazer momentâneo se convertem em ingredientes obrigatórios à felicidade dos indivíduos.

E essa é uma “oração” contemporânea das mais “recitadas”, a qual conclama os fiéis a exaltarem o triunfo da "carne", no seu sentido estético-corporal (alerta: não estamos aqui reeditando e revalorizando a dualidade carne-espírito tão caro ao cristianismo medieval).

Porém, como (quase) tudo tem “seu” preço. Esse tipo de obsessão pela estética humana termina por provocar patologias sérias em muita gente.

Começam, assim, a aparecer doenças como “anorexia, bulimia e vigorexia (transtorno decorrente da prática de exercícios físicos em excesso) (...). Ou seja,”muitos colocam suas vidas em risco, consumindo remédios para emagrecer e anabolizantes, ou até mesmo fazendo cirurgias desnecessárias."




Nesses termos, poderíamos perceber ainda o culto ao corpo como uma espécie de religião, com suas crenças, mitos, penitências, milagres (estéticos), templos (academias) e discípulos fervorosos.

Uma dogmática alimentada por uma cultura de consumo, embasada na comunicação visual e no body image (imagem do corpo). É ela que sacraliza a “carne”, endeusa o “corpo perfeito” e prega a “juventude eterna”.

O sociólogo francês Michel Maffesoli, ao desenvolver sua ideia de corporeidade, resume bem esse drama atual: “os corpos são social e culturalmente construídos para serem vistos por outrem – na publicidade, na moda, na mídia e em todas as esferas da sociedade – isto é, o corpo é “teatralizado” para ser exibido em espetáculo, engendrando comunicação e satisfação visual”.


Em alguns cultos religiosos isso também pode ser observado: por exemplo, nos shows religiosos do Padre Fábio Melo, há uma exaltação do seu corpo (percebam sua vestimenta). O religioso e o fetiche do corpo se misturam num evento, em tese com fins espirituais.

Notem, por outro lado, as promessas milagrosas implícitas nas propagandas de cirurgia plástica, do uso do botox, anabolizantes e na própria indústria de cosméticos, todas bem representativas dessa sede por uma interferência “mágica” no corpo.

E mais: a tríade abençoada pela mídia (beleza-saúde-juventude) torna-se quase a meta sagrada. Por isso, “as mulheres, mais e mais, são empurradas a identificar a beleza de seus corpos com juventude. “Instaura-se a tirania da perfeição física (magras, belas e turbinadas)”.

O "corpo perfeito" é esculpido a partir de uma idealização encantada, uma "obra de pigmaleão". Esse personagem da mitologia grega ao tentar esculpir a  mulher perfeita, ideal, termina por se apaixonar por sua obra prima. Depois sua obra (a bela Galateia) torna-se viva através de uma interferência (milagrosa ou mágica) de Afrodite (nossa deusa da beleza).


Essa narrativa parece um pouco com a nossa sociedade atual: criamos um modelo ideal de beleza (o esculpimos) e ao nos apaixonarmos por esse modelo, rogamos a "interferência milagrosa" para que esse modelo ganhe vida nas ruas, para podermos adorá-lo (uma espécie de efeito pigmaleão social).

Talvez por isso a historiadora Mary Del Priori radicalize ao falar de um aumento assustador do “número de mulheres que optam pela imagem da Barbie americana, dona de volumosos seios de plástico, cabeleiras louras falsas e lábios de Pato Donald”.


Outra questão interessante, abordada por alguns pensadores contemporâneos, diz respeito à existência de uma contradição crítica para mulher pós-moderna. Pois, se de um lado, a mulher conseguiu ter, enfim, a posse e o controle de seu corpo. Por outro lado, esse mesma mulher tornou-se submissa à tríade da "perfeição física". Libertou-se sexualmente e se escravizou esteticamente.


Era como se “o físico, os sentidos e a alma” se massificassem e diluíssem para atender a “ditadura de idealização da beleza".

Enfim, o culto ao corpo e ao prazer estético nos leva a pensar e crer numa felicidade associada à imagem da juventude e “corpo perfeito”. Essa é a nossa “camisa de força” culturas. Como sobreviver a ela e tentar criar caminhos alternativos fora de suas determinações inquisitoriais, é uma questão interessante e urgente a se pensar....
 
Continuaremos........



Fontes e bibliografia:
http://www.minosoft.com.br/mirela/download/o_culto_ao_corpo.pdf
http://www.itaucultural.org.br/educacao/download/mary.doc
http://www.efdeportes.com/efd9/anap.htm


http://www.metodista.br/cidadania/numero-59/a-sociedade-do-culto-ao-corpo-perfeito/

Livros: A história do Corpo, A história das Mulheres no Brasil, História das mulheres.