sábado, 5 de junho de 2010

O "Sacramento da Confissão" e o controle da sexualidade.



Foi o IV Concílio de Latrão, em 1215, que tornou as confissões obrigatórias, exaustivas e periódicas (Foucault).


Mas esse poderoso sacramento cristão tem também uma relação bastante interessante com a sexualidade feminina, ou melhor, com o seu controle. É disso que iremos falar.



Antes, porém, é importante responder o que é na realidade o "sacramento da confissão"?

Para a Igreja Católica,  Jesus Cristo veio "em auxílio do pecador por meio de um Sacramento especial. Durante sua vida terrena, perdoou aos pecadores arrependidos, e na Cruz expiou a culpa de toda a humanidade. No dia da sua Ressurreição, deu aos Apóstolos e aos seus sucessores no sacerdócio, o poder de perdoar os pecados em seu nome. Instituiu assim o Sacramento da Confissão ou Penitência e o confiou à sua Igreja".


Mas pensemos primeiramente em termos do século XIX - considerado por muitos especialistas como a «idade de ouro do sacramento e da penitência, ou seja, o século da confissão».

Vejam que é possível se fazer uma ponte entre a confissão e a contenção da sexualidade, em particular num mundo burguês que tentava a todo custo definir e impor um modelo de mulher ajustado aos seus interesses.



Pois bem. Com a vigorosa ajuda  do sacramento da confissão  foi possível catalogar, classificar e codificar a sexualidade, isso de um modo meticuloso e exaustivo (Marilena Chauí). 

Ora, a simplicidade da lista dos quatro pecados de São Paulo teria, então, "se perdido na noite dos tempos, ante a sofisticação das situações pecaminosas extraídas das confissões" (Chauí).

Aliás, dos sete pecados capitais (soberba, avareza, luxúria, ira, inveja, gula e preguiça), o pecado sexual dominaria todos os demais. Notem que a confissão terminou por gerar uma espécie de ansiedade em relação ao sexo e alimentou a famosa culpa cristã.



A evolução dos procedimentos de confissão teria sido espantosa. Numa primeira época, se indagava o que se teria praticado efetivamente pela penitente, especialmente com relação aos atos sexuais (Foucault). 


Todavia, inspirado em Santo Agostinho, a indagação passaria a contemplar se haveria, além do ato, o desejo de praticá-lo, ou seja, estar-se-ia agora na seara das intenções de pecar.

Em seguida, o confessor seria instruído a conhecer a verdadeira anatomia do pecado carnal e todas as circunstâncias e materializações em que esse pudesse ser representado e gerasse um estímulo (Chauí ).


              Curioso observarmos que é do século XIX (1853) o primeiro pronunciamento-resposta da igreja católica a respeito do uso do preservativo (“camisinha”). Nesta ocasião teria sido formulada a seguinte questão: «A mulher pode ceder passivamente a esse tipo de relação sexual?». A resposta do Vaticano: «Não» (Uta Ranke).

No último quartel deste século a igreja passaria a encabeçar uma luta severa contra a anticoncepção. Essa obsessão por detectar “sinais de pecado” ficaria evidente nas confissões femininas. Além dos praticados e os desejados, suscitariam ainda os (“pecados”) que poderiam provocar as tentações (Corbin).

Um enquadramento dramático para a mulher, a partir do qual se imporia um controle e uma vigilância tão intensos, que terminaria por semear o aparecimento da própria “situação pecaminosa”.

Em resumo, o que era para ser uma barreira, psicológica, social e cultural, de fundo “religioso”, para se evitar os “males” prescritos pela igreja, paradoxalmente, se transformaria num estímulo ao “pecado”.

E o confessor com suas indiscrições bem intencionadas, muitas vezes, funcionava como o alimentador do “pecado”.


A insistência nas confissões em abordar o tema sexualidade terminava por estimular a própria sexualidade (um paradoxo não prevista pela Igreja).

Mas não se parou por aí. Depois da caracterização do pecado a partir do “estímulo à tentação”, a lista de pecados e ocasiões seria incrementada com um novo componente: os sonhos.

Até as alegrias dos sonhos seriam agora motivo de preocupação e de pecaminização.

Portanto, o corpo e a alma relaxados para o descanso, criariam a melhor oportunidade para o demônio infiltrar-se, sem que houvesse como combatê-lo e vencê-lo.

De posse, então, desses sinais detectados, o confessor deveria formular sua pedagogia. Talvez por isso, tantos códigos de comportamentos foram elaborados para conter quaisquer que fossem as atitudes providas e indutoras de sexualidade (Vigarello).

Não havia limites para imaginação, pois sempre haveria algo novo e pecaminoso no ar por trás de um olhar inocente. Era como se todos estivessem de máscara escondendo a luxúria, o desejo de "pecar".


E o corpo e o mundo estariam, assim, "postos sob suspeita", ou seja, a confissão cria uma sensação de desconfiança no outro.

Entretanto, a eficácia dessa obsessão deve sempre ser examinada com ressalvas. Exageros à parte, Vincent nos explicita o pensamento de Flandrin, para quem os preceitos cristãos não teriam sido seguidos pelos seus fiéis.

O fundamental não estaria tanto na eficácia conseguida ou não pelas regulações religiosas alimentadas pelo confessionário, mas na implantação invisível de um modelo ideal de vida e de perfeição determinando a existência social (Chauí).


Com relação ao Brasil, Gilberto Freyre faz uma ressalva interessante sobre esse mecanismo de vigilância religiosa. Para ele o confessionário teria funcionado como «meio que teve a mulher patriarcal no Brasil de descarregar a consciência e de libertar-se um pouco da opressão do pai, do avô ou do marido sobre sua personalidade».




Ademais, toda essa pressão de uma moral burguesa rigorosa, apoiada pela igreja e parte da classe médica, terminaria por insuflar meio a contragosto o imaginário erótico - como o confessor que de tanto abordar o tema sexualidade termina por chamar atenção para os “vícios da carne”, como o fizera o sacramento da Confissão.


Para Foucault, é sob essa nuvem de desconfiança, de vigilância e medo do sexo, que por volta de 1860, começaria «a história contemporânea da sexualidade». Uma sexualidade inventada, segundo ainda Foucault, pela «preocupação com a própria sexualidade».

Corbin assim nos delineou esse momento: «Surdas emoções abalariam a cultura tradicional: o imaginário erótico se transforma. Encerrado na esfera privada, o burguês começa a sofrer com a sua moral.



A "tentativa" de contenção sexual foi tão intensa que o erotismo terminou por inundar o ocidente, uma espécie de reação da psique.

A miragem de uma sexualidade popular, bestial e livre, aviva a tentação da fuga social: a prostituição passa a ter novos atrativos». Um novo contexto começa a se idealizar, o tema prostituição invadiria a literatura (ora, a literatura não é inocente). Zola procuraria ilustrar essa valorização dos bórdeis ao escrever Nana.(Mary Del Priore). 

E quando os casais se erotizam, nos ensinou Corbin, «o fascínio da carne» se estabelece. Na ficção, o ideal do «anjo do lar» sofre também suas transformações, as personagens femininas tornam-se seres sexuais, sensuais (Mary Del Priore).


Mesmo no Brasil, Gilberto Freyre faz referência ao inconformismo do padre Lopes Gama (1793-1805), um crítico dos costumes do império, com uma crescente substituição da «dona de casa ortodoxamente patriarcal nos sobrados e até em algumas casas-grandes de engenho», nos princípios do século XIX, «por um tipo de mulher menos servil e mais mundano», que iria ao baile e ao teatro, lia romance e estudava música (Mary Del Priore).

A devoção religiosa e as visitas ao confessionário já não eram na intensidade de antigamente, pelo menos para as mulheres mais elegantes.

Um choque entre o puritanismo cristão, a família burguesa e os desejos inconfessáveis se instauraria. Ante esse quadro dramático, restaria à sociedade patriarcal um remédio necessário: tentar intensificar a castração da sexualidade feminina e usar e abusar da hipocrisia para se saciar “onde tudo pode”: no lupanar (bordel) e nas infidelidades.


Um conflito que se estenderia por muito tempo e marcaria a história da sexualidade contemporânea...


Referências bibliográficas: Moral Sexual: a mulher pós-moderna no Confessionário, André Agra; Repressão sexual, Marilena Chaiui; História da sexualidade, v.1, v2 e v.3, Michel Foucault. Eunuco pelo Reino de Deus, Uta Ranke. História do Corpo, Corbin; História das Mulheres no Brasil, Mary Del Priori; e outros.