domingo, 23 de maio de 2010

A obsessão cristã em demonizar o sexo na Idade Média: um prenúncio da "caça as bruxas".


Nossa intenção em abordar esse tema não é simplesmente discutir a história por si só, mas, fundamentalmente, tentar compreender o reflexo desse passado em nosso tempo, no nosso “hoje” .

Um passado, talvez até distante, mas que tem muito a nos ensinar sobre os nossos costumes e comportamentos atuais.

Falamos, em particular, da demonização do sexo e  às suspeitas lançadas sobre as mullheres, numa conjunção de força que iria subsidiar a famosa "caça as bruxas" e alterar o imaginário ocidental sobre a sexualidade feminina.

Nos dediquemos, no entanto, ao período compreendido entre os séculos XI a XIII (na Europa feudal).
Uma época na qual se instauraria uma intensa manipulação da imagem da mulher e de seu corpo. E notem: numa contexto cultural em que o poder patriarcal e a Igreja reforçariam o seu desejo de castrar cada vez mais a sexualidade feminina.

Tentavam, dessa maneira, impor uma forma de pensamento baseada numa suposta  "aspiração divina", de acordo com sua interpretação das Escrituras, a despeito da natureza e dos próprios instintos humanos.

Nessa situação, a honra e a vergonha, assuntos  eminentemente masculinos, seriam ao final vinculados ao comportamento das mulheres. 

Ora, eram as mulheres que, segundo se temia, poderiam "desonrar" os homens, especialmente no exercício de sua sexualidade.
Nesse período se consolidaria o "Amor Cortês", cantado pelos trovadores.

Tudo isso gerou um receio doentio e obsessivo, em particular com o adultério. O que "justificaria" o enclausuramento e a vigilância das mulheres.

Talvez por isso, tantas lendas e contos da época abordassem essa tema. Com um detalhe interessante: geralmente eram relatos que terminavam com fins trágicos. Um exemplo clássico é Tristão e Isolda.


Essa vigilância para com a mulher se estendia, inclusive, a sua solidão (assunto de nosso texto anterior). Diziam à época: "se uma menina se tocasse (masturbar-se), ou estava tendo um encontro com Satã ou havia sido enfeitiçada por bruxas". (...) "A paranoia era tão grande que muitos tomavam banho vestidos”.

Mesmo a forma de praticar o ato sexual sofreria a interferência da Igreja, ou seja, a posição consentida era a chamada “a missionária” (atual “papai-e-mamãe”).

Curiosidade: essa posição sexual era a que os missionários cristãos difundiam "em sociedades onde predominavam outras práticas".

Pois, para os cristãos, seria a ela a única posição a estar de acordo com a palavra. Usavam incluvive o apóstolo Paulo. "A mulher deveria sujeitar-se ao marido", ou seja, a posição  da mulher por baixo, no ato sexual, era uma representação dessa submissão.

Lembremos, entretanto, da rebeldia de Lilith (primeira mulher antes de Eva) que exigiu copular por cima com Adão. Uma insubmissão prontamente negada (por não estar compatível com a natureza).

Mas a Idade Média seria palco de outros estranhos exageros no tocante ao ato sexual. Em particular, quando o ato envolvesse mulheres virgens: é o caso do direito do senhor feudal em violar a esposa do seu servo (Latim: jus primae noctis).

O ancião entregando suas filhas ao senhor feudal. Não podemos deixar de fazer um paralelo dessa situação com o que ocorreu em nossas fazendas até pouco tempo.

Georges Bataille, em seu ensaio Erotismo, visualizaria o direito à “primeira noite” além de uma demonstração de poder e de abuso contra a mulher, uma simbologia de interdição associada ao ato de deflorar uma virgem.

Expliquemos melhor: o ato sexual ao ser colocada sob o "signo da vergonha", combinado com o ato de “defloramento” de uma virgem se caracterizava uma transgressão de ordem muito elevada. Pois muitos religiosos só atribuiam a virtude a uma mulher que fosse virgem.

Por consequencia, o noivo se tornava uma figura inabilitada para o ato.


Caberia, assim, a alguém com "poder" para tal.

Os sacerdotes inicialmente indicariam os eleitos - prática coibida pelos religiosos. Em consequência, estabeleceu-se o costume vil de pedir-se ao senhor, um soberano, da região para deflorar a moça.


No fundo, a intenção por trás de todos esses costumes e arranjos sociais seria a manipulação e limitação do autoconhecimento corporal da mulher. Como se quisessem aproximá-la ao modelo mariano (segundo uma visão "purista" e irrealizável).


A historiadora Mary Del Priore seria mais enfática ainda, ao vê-los como indutores de uma repressão sexual rigorosa e geradora de uma relação mulher/corpo matizada por sentimentos de culpa, de impureza e de vergonha.

No entanto, a igreja, não satisfeita, reforçaria cada vez mais o seu pessimismo sexual e sua misoginia (espécie de ódio à mulher). E usaria, dentre outros, documentos como o Responsum, do papa Gregório Magno (540-604 d. C), o provável idealizador dos sete pecados capitais. Para Gregório o prazer nunca ocorreria sem pecado.

Em suas reflexões sobre o prazer, fazia questão de realçar: «não basta dizer que o prazer não é meta lícita nas relações sexuais, mas que, quando ocorre, há transgressão das leis do matrimônio».

Essa visão perduraria do século XI ao XIII – época da Escolástica (a idade áurea da teologia).


Santa Catarina de Siena (1347-1380 d.C), por exemplo, afirmaria: «nenhum pecado é mais abominável que o da carne»(Carlos Bauer).

Essa relação de pecado e sexualidade seria um elemento central da afamada culpa cristã – um «poderoso veneno», nos diria Nietzsche, ao criticar o ideal das religiões cristianizadas de macular a vida, o corpo e o “homem”.

Com efeito, a concupiscência da carne passaria a representar na sua simbologia o próprio demônio. Esse martírio psicológico perseguiria os fiéis da cristandade por muito tempo, e tornar-se-ia um elemento intrínseco e emblemático da tradição católica.
É notável a dificuldade da Igreja Cristã em lidar com o corpo e as suas sensações. Mesmo o tocar-se para efeito de higiene era motivo de preocupação.

No século XIII, segundo Duby, no ambiente monástico de Cluny imperava o costume dos monges tomarem banho completo só duas vezes por ano (no Natal e na Páscoa), sem, contudo, «descobrir suas partes pudendas».

Não podemos, nesse sentido, esquecer S. Tomás de Aquino. Discípulo de Alberto Magno – tido como «o grande depreciador das mulheres» e para quem elas não saberiam o que é fidelidade.

O príncipe dos teólogos conceberia uma teologia cristã na qual o casamento seria levado ao seu nível mais baixo, criando as condições à «demonização do sexo» (Uta Ranke).

Para ele, a mulher nasceria em circunstância de um fracasso da natureza. Em palavras mais precisas: o homem seria a concepção de primeira ordem e a mulher um “homem mal formado”.


Aquino teria, ainda, fertilizado uma crença supersticiosa de homens e mulheres que teriam relações sexuais com o demônio. Seu desprezo pelo feminino em parte se consubstanciaria nos erros biológicos e nos princípios patriarcais de Aristóteles.

Isso o levou a acusar as mulheres, bem mais que os homens de manter relações sexuais com demônios, chamados súcubos e íncubos.

Para Tomás de Aquino, havia dois tipos de pecado relacionado à luxúria: os pecados contra a razão (fornicação e adultério) e pecados contra a natureza.

Seriam considerados pecados contra a natureza a masturbação, o sexo com animais, a homossexualidade e a prática "antinatural" do coito. Assim, por exemplo, "não se podia fazer sexo em orifícios não naturais (boca e ânus), mesmo que fosse entre marido e mulher".



Uta Ranke atribui a Aquino não a responsabilidade teológica pela Bula das Feiticeiras (1484 d. C), formulada por pelo Papa Inocêncio VIII, mas perceberia o pensamento aquiniano como uma condição essencial desse famigerado instrumento de perseguição cristã.

Nessa linha, em 1487, os autores do Martelo das Feiticeiras (espécie de Bíblia da Inquisição), os alemães, J. Sprenger e Heinrich Institoris rogariam a punição de pena de morte para as “bruxas parteiras”, por acusá-las de matar crianças não batizadas, o que na concepção agostiniana significaria a condenação ao inferno.


O imaginário ocidental incoporou às mulheres a figura da bruxa e os mistérios a ela associados.

Martelo das Feiticeiras - manual de demonologia mais importante usado pela Igreja Católica nos processos inquisitoriais, além de pregar uma perseguição incansável às mulheres, sugeriria uma suposta condição de fraqueza do feminino com relação ao sexo e “pregava” sua aproximação com o demônio.

A historiadora e feminista, Rose Mary Muraro, é ainda mais precisa no tocante ao tema, para ela o Maleus Maleficarum associaria a transgressão sexual à transgressão da fé, e transformaria a sexualidade feminina na própria figura do demônio.

Essas posturas cristãs, além de legitimar a violência a partir do “sagrado”, terminariam por criar uma imagética feminina associada ao medo, ao perigo, à lascívia, ao próprio demônio, ou seja, haveria uma depreciação exagerada da mulher, pelo menos àquelas não enquadráveis às regras prescritas pela igreja.

E não pensem que estamos falando de coisas tão distantes.....



(continua ....)

Referências bibliográficas: Eunucos pelo Reino de Deus, Uta Ranke, Erotismo, Georges B.; História da Vida Privada, Duby; A história do feminismo no Brasil, Carlos Bauer; e outros.

domingo, 9 de maio de 2010

A masturbação feminina e as "mulheres católicas".


Falaremos em breves palavras sobre um tema ainda polêmico: a “masturbação feminina”. O faremos segundo pesquisas bibliográficas e entrevistas realizadas em cinco cidades nordestinas, com um total de 100 mulheres, incluindo-se as católicas carismáticas.

Primeiramente é bom que se diga: em quase todos os tempos de nossa história ocidental, a cultura criou um ambiente de intensa e doentia vigilância sobre a mulher. Um olhar destemido que se estenderia também ao seu “prazer solitário”, ou seja, a masturbação.




Não esqueçamos que a medicina e a igreja, aliadas aos “bons” costumes burgueses, fizeram por muito tempo uma marcação cerrada e impiedosa para se evitar o que consideravam um "vício abominável", o "supra sumo dos vícios".

Até textos bíblicos foram usados para solidificar essas posturas e “cuidados”. Um exemplo típico é a Carta aos Coríntios de Paulo: «os fracos (isto é, aqueles que ejaculam voluntariamente, sejam rapazes ou moças, sejam casados ou não casados) não possuirão o reino dos céus» (1Cor 6-10) (Jean Delumeau).

Tudo isso para embasar um pensamento moral no qual o gozo feminino não seria tolerado sem a presença masculina.


Nesse sentido, a hostilidade dos médicos do século XIX se voltaram para o clitóris – «simples instrumento de prazer e desnecessário à procriação». E médicos, padres e pais fariam uma verdadeira cruzada contra a masturbação (também conhecida como onanismo).


O exagero era tanto que alguns médicos viriam até na prática da equitação e no uso da máquina de costura (essa última denunciada pela Academia de Medicina em 1866), uma possibilidade da mulher encontrar o prazer no movimento das pernas (Corbin).


Próprio Philippe Pinel, médico francês considerado por muitos o pai da psiquiatria, defendia que as mulheres ficariam loucas irrecuperáveis mediante o exercício inapropriado da sexualidade, devassidão, propensão à masturbação e homossexualidade.


Por isso, até o início do século XX, acredita-ve que a masturbação seria causadora de doenças mentais (a histeria é um exemplo). Uma tese defendida por vários médicos, a despeito das descobertas de Freud (Mary del Priore).

Na realidade, a partir de Freud e da psicanálise começa-se a se justificar e amenizar a culpabilização dos desejos e das fantasias que provocaram por tanto tempo aflição nas mulheres e que eram estímulos à masturbação. O desejo, dito na linguagem clerical como demoníaco, passaria a ser tratado como um algo natural.

E no século XX, toda uma cultura começaria a ser arquitetada em cima dos conceitos de sexologia e orgasmoterapia. E ao contrário do passado, a masturbação feminina passa a ser prescrita científica e naturalmente como parte de um sistema de melhoria de vida das mulheres, ou seja, com fins terapêuticos. E sem mais nenhuma conotação de indecência ou de incentivo a perversão (Vicent).


A sexologia na realidade fez funcionar um sistema em que se defenderia abertamente a erotização e a legitimidade do prazer. Duas variáveis da sexualidade humana fundamentais, mas em contraposição flagrante à moral sexual pregada pela doutrina católica.



Notem que ainda hoje, para o Catecismo vigente da Igreja Católica, "o prazer sexual é considerado moralmente desordenado, quando é buscado por si mesmo, isolado das finalidades de procriação e união" (Catecismo).




Considerando que a definição do termo masturbação oferecido pelo documento vaticanício o situaria no contexto da «excitação voluntária dos órgãos genitais» com o fim exclusivo de conseguir um prazer venéreo, «o ato seria intrínseca e gravemente desordenado». Sem meias palavras, persistiria a condenação religiosa para esse tipo de prazer na contramão de toda uma ciência e dos costumes.

E isso de certa forma apareceu nas entrevistas, realizada em 2008, com mulheres de João Pessoa (PB), C. Grande (PB), Natal (RN), Recife (PE) e Salvador (BA).



Interessante observar que não tivemos dificuldades em abordar o tema nas entrevistas. Poderíamos até imaginar com isso um traço de abertura das mulheres (de quebra de tabu).

Mas falemos dos resultados:

Pois bem. Sobre as respostas e comentários a respeito do tema masturbação, podemos afirmar que esse foi um divisor de águas bem nítido entre as mulheres mais afastadas do catolicismo e as mulheres carismáticas.

Ora, por mais que se fale em avanço da sexologia e da busca do prazer, a pesquisa demonstrou que muitas mulheres ainda associam a masturbação a algo errado ou desnecessário; um tabu ou até um pecado.





Em suma, reina ainda esse tabu cultural, pelo menos nos grupos de mulheres mais próximas do catolicismo. E entre as carismáticas, 89,29 % das entrevistadas consideram a masturbação um ato que visa exageradamente a sexualidade, por isso, um perigoso estímulo ao prazer sensual, que termina por se distanciar do "projeto de Deus".



Bem diferente é a percepção das mulheres mais afastadas do catolicismo. Para elas (mais de 82% das entrevistadas), o tema é visto dentro de uma perspectiva de naturalidade e de autoconhecimento (do corpo sexuado).

Essas mulheres pensam a masturbação como um ato comum inerente à natureza feminina e uma prática necessária ao desenvolvimento da sexualidade e autoconhecimento para as mulheres em geral.



Todavia, elas próprias às vezes apresentam sinais de culpa e desconforto em lidar ou assumir a prática; muitas inclusive, não obstante acharem normal, dizem não praticar isoladamente.

No fundo, os resultados mostraram que a masturbação é ainda um tabu cultural para muitas mulheres, especialmente, às ligadas aos movimentos carismáticos.


Jean Delumeau, O pecado e o medo: a culpabilização no Ocidente. Vincent, Gérard. História da vida privada. Alain Corbin; História da vida privada: a relação íntima ou os prazeres de troca. André Agra. Moral sexual: a mulher pós-moderna no Confessionário. Catecismo da Igreja Católica; Georges Vigarello, História do Corpo