sexta-feira, 26 de março de 2010

A prostituição sagrada e as Grandes Deusas.


O tema prostituição sempre foi polêmico e provavelmente nunca deixará de sê-lo. A despeito de tudo isso, é possível abordá-lo como um fenômeno social. Aqui, por enquanto, nos preocuparemos em discutir a prostituição sagrada e falar um pouco das Grandes Deusas do "passado".

Primeiro é importante que se diga: a prostituição já foi considerada sagrada, segundo alguns historiadores. E o que surpreende nela, segundo Maffesoli, era sua “função agregativa”, ou seja, a capacidade de “juntar” o grupo, de promover a coesão. Além de fortalecer os laços das comunidades antigas, sob uma aura de misticismo (ou de um “orgiasmo sagrado”). Tudo em torno da crença nas Grandes Deusas.

Nesse sentido, o sexo e a espiritualidade comungariam em benefício de um projeto da comunidade.
Evidencia, ainda, o referido sociólogo francês uma função primordial da prostituição sagrada, tal seja: “ser tudo para todos”, dar-se ao conjunto integralmente (o que é característica fundamental de uma divindade e de suas representantes).

Mas, precisamos, antes de mais nada, encarar a polêmica sobre a existência ou não de uma Era matriarcal. Uma suposta época em que a mulher detinha (ou compartilhava) a hegemonia política e o poder religioso, sem nenhuma supremacia do homem.

Nessa sociedade idílica, defendem alguns autores, não haveria guerra nem violência sistemática. Nela, se festejava a vida em cultos silvestres (e agrários) para homenagear a deusa natureza e sua força criadora (a fonte da vida: como é o caso da Vênus do paleolítico). Notem que por sí só a mulher é símbolo da vida. É ela que gera e dá a luz. Por isso, sua associação com as divindades geradoras.


Claro que há uma idealização bem evidente nesse pensamento. Mas, assim são construídos os nossos mitos, inclusive os cristãos. (Estamos a usar o termo “mito” no sentido de verdades profundas, embelezadas com metáforas, poesias e simbolismos).

Pois bem. Segundo Rose Muraro, essas sociedades teriam florescido em várias regiões há pelo menos 30.000 a.C. A historiadora faz ainda referência à introdução de um novo modo de produção, o agrícola (em torno de 10.000 a.C) e o estabelecimento da cultura das cidades, tudo isso com estreita relação ao matriarcado.

Era o Tempo das Grandes Deusas, cujo declínio teria acontecido especialmente a partir de 4.000 a.C. Motivadas por invasões de povos guerreiros advindos dos estepes, os quais teriam “introduzido o machismo, a cultura da guerra e a sociedade patriarcal”.

É nesse declínio que se daria o surgimento das religiões abraâmicas (o judaísmo, o islamismo e o cristianismo). Ora, os textos bíblicos mais antigos datam em torno do século V ao I a.C. e em muitos deles há uma mensagem patriarcal bem forte e às vezes não tão amigável à mulher.

O Gênese é prova disso. Não é à toa que “a mulher aparece como duplamente culpada pela queda humana”, pelo menos segundo uma leitura mais tradicional. Além disso, no mito adâmico, a serpente aparece como símbolo do mal. Mas a serpente era símbolo de sabedoria e de regeneração para as Grandes Deusas. Talvez, por isso, a tentativa de trazê-lo para o "lado" do mal.

Quanto ao cristianismo, importante comentar que a Virgem Maria, talvez, não possa ser considerada como uma representação da Grande Deusa. Penso próximo à visão de Ana Maria Mendes. Para ela, enquanto a "Grande Deusa é quem propiciava vida e a morte, sendo a deusa da terra e das forças telúricas. A Virgem Maria é a Deusa dos Céus que sendo Virgem deu à luz o filho de Deus". Apesar de encontarmos algumas semelhanças entre a Virgem Maria, a Ísis Egípcia, Devaqui, entre outras, inclusive quanto ao nascimento virginal de seus filhos.

Mas não entraremos nessa controvérsia, importa-nos examinar, nesse momento, a vida nos Templos erguidos para adoração das Deusas. Eram nesse lugares sagrados nos quais as suas sacerdotisas ofereciam serviços sexuais (pagos). As taxas serviam como uma espécie de oferenda às deusas. Um tributo aos seus “favores sexuais” de conotação divina.

Na Suméria (Oriente Médio), por exemplo, as sacerdotisas da Deusa Inanna, mais tarde chamada de Ishtar, na Mesopotâmia, cultivavam o ritual da prostituição “como forma de ajudar aqueles que procuravam o templo para reencontrar-se, morrer para renascer e dar um novo sentido a vida”.

A própria Ishtar, “a benfazeja”, foi identificada como uma prostituta. E mais: sendo as prostitutas-sacerdotisas membros do templo, considerado centro religioso, político e econômico na Mesopotâmia, o status de prostituta era bastante elevado.

Não esqueçamos que no próprio código de Hamurabi, os direitos da prostituta sagrada eram protegidos. “Seus filhos não eram difamados e elas preservavam a reputação de mulher casada”.

Um dos primeiros poemas mais antigos que se tem notícia no mundo, o Épico de Gilgamesh (em torno de 2.000 a.C), fala da prostituição de uma forma sagrada, bem como exalta seu poder civilizador.

Poderíamos ir multiplicando os exemplos. Mas não podemos deixar, por último, de citar a tentativa da Igreja, no passado, de associar Maria Madalena a figura de uma prostituta (arrependida). E Lot que “oferece suas filhas “virgens” aos habitantes de Sodoma em troca de deixarem em paz os estrangeiros que acolheu em casa (Gênese 19,6)”.

Mas voltemos ao nosso percurso. Os homens buscavam os templos para melhorar as colheitas, os rebanhos, para chover mais (“a chuva fecundadora”). E até para receberem as bênçãos e a graça das deusas visando engravidar suas esposas.

Segundo a historiadora Nickie Roberts, essas mulheres foram consideradas a encarnação terrena da deusa. Eram o “elo vital entre a comunidade e a sua divindade, e isso elas fizeram como sacerdotisas xamânticas”. As Vênus, por exemplo, representam a fertilidade.

Não havia a famosa dualidade neoplatônica tão cara ao cristianismo, ou seja, não havia um distanciamento fundamental entre o espiritual e do sexual. Carne e espírito comungavam com certa harmonia, como parte da natureza. Por isso, tantos rituais de celebração a fertilidade nas mais diversas religiões e mitologias.

Marie Louise von Franz fala-nos das religiões pagãs, originárias dos germânicos e dos celtas, nas quais se cultuavam à Mãe Terra e a outras deusas da natureza. Em muitas dessas festas haveria a prática de orgias sexuais com uma aura de sacralidade. Os carnavais têm muito haver com essas celebrações. E as máscaras venezianas têm certa relação com a vontade de perde-se no todo, abandonando a individualidade.


Por isso, para alguns autores a prostituição sagrada era uma forma de atingir a espiritualidade através da carne. Nesse sentido, Débora F. Lerrer, em seu artigo Sexo Sagrado, nos afirma: “A prostituta sagrada encarnava a deusa, tornando-se responsável pela felicidade sexual”.

Do mesmo modo, os ritos secretos, ligados a tradições pagãs deixaram vestígios da existência de rituais sexuais, como Mistérios de Eleusis, dedicado à deusa Deméter, na Grécia. E ritos outros que se espalharam pela Europa. Todos com a característica de "transcender o indivíduo", como se "o prazer entrasse na esfera da vida cósmica".

Mais curioso ainda é que não só as sacerdotisas arrecadavam tributos para o templo. No culto à Deusa Milita, na Babilônia, por exemplo, pelo menos uma vez na vida todas as mulheres migravam à porta do templo e ofereciam serviços sexuais.

O dinheiro era, então, doado ao templo, como oferenda. Uma taxa dita como justa e devida à Deusa. Detalhe: nenhuma mulher poderia se negar a prestar o serviço.

Na Idade Média as francesas de Savóia, uma vez por ano, se reuniam para visitarem tabernas e se encontrarem com outros homens, com o consentimento dos respectivos maridos. A despeito da questão do pagamento, tal comportamento parece ser uma recorrência da época da prostituição sagrada e dos cultos da fertilidade.

Vejam que por trás do tema “prostituição sagrada” há uma boa discussão sobre sexualidade e religião. E mais: denota a força do patriarcalismo, embasada nos credos judaicos, cristãos e islâmicos, e seu controle sobre a sexualidade das mulheres.

Continuaremos...

Fontes; As prostitutas na história, Nickie Roberts; As prostitutas na Bíblia, Jonathan Kirsch; Feminino e masculino, Rose M. Muraro e Leonardo Boff; A sombra de Dioniso, Michel Maffesoli.
Outras fontes:
http://www.triplov.com/creatio/moreira.htm; http://www.forumnow.com.br/vip/mensagens.asp?forum=15836&topico=2667152

segunda-feira, 8 de março de 2010

A "infidelidade feminina" e a moral católica

Helena e Paris - Na Ilíada, Helena foge com Páris para Tróia e abandona seu marido (Menelau).


Tentaremos abordar brevemente o tema infidelidade sexual, sob o ponto de vista da mulher e como fenômeno contemporâneo, destacando à medida do possível os seus conflitos com a doutrina moral católica.

Acrescento: esses conflitos ficarão mais evidentes em um artigo seguinte dedicado à moral sexual relativo à mulheres consideradas “católicas praticantes” (inclusive as do movimento carismático).

Nossa conversa se fundamenta em pesquisas bibliográficas (inclusive documentos oficiais da igreja) e pesquisa de campo (entrevistas).

As entrevistas foram realizadas, em 2008/2009, com 130 (cento e trinta) mulheres de classe média ou alta, entre 18 e 44 anos, originárias de cinco cidades nordestinas: João Pessoa, Campina Grande, Natal, Recife e Salvador.

Foram abordados os seguintes temas: virgindade, masturbação, fidelidade, desejos, culpa, aborto, união civil (relações homoafetivas), pecado original, crença na virgindade de Maria etc. Aqui, por enquanto, discutiremos a variável pesquisada: relativização da fidelidade sexual.


Falemos então sobre a (in)fidelidade.

Foi observado, no discurso das mulheres mais afastadas do catolicismo institucional, que quase a metade das entrevistada (48%) reconhecem que a fidelidade ao parceiro perdeu um pouco de sua sacralidade, ou seja, não é algo tão fundamental (indiscutível) em uma relação. Podendo até ser flexibilizada.

Tentemos, pois, compreender alguns aspectos desse fenômeno social, que é sempre polêmico.

Primeiramente, é bom que se diga: falar em infidelidade, nos dias atuais, é também discutir um pouco a liberdade sexual conquistada nas últimas cinco décadas pelas mulheres. E mais: o velho jargão popular "o homem, tudo pode..." parece caducar um pouco, pois nos obriga a perguntar: "e a mulher?"

Nesse sentido, o movimento jovem das décadas 60 e 70 (e falamos especialmente dos Hippies, ao som do rock and roll e de seus famosos slogans Peace and Love) não teria sido revolucionário se não tivesse se posicionado também em flagrante discordância aos valores tradicionais da sociedade, incluindo a moral sexual. 

Uma moral que era permissiva com a infidelidade masculina mas condenava veementemente a infidelidade feminina.


Na realidade, a sociedade impôs uma repressão muito intensa à mulher e a sua sexualidade. Além de tentar "guardá-las" nas paredes do lar, restringí-las ao doméstico, melhor dizendo, consagrava o modelo burguês (do século XIX): mulher maternal, passiva e quase assexuada.

Todavia, esse tipo de modelo começou a se desmoronar (falamos em termos de tendência). Não no ritmo "cantado" em Woodstock (lendário festival de rock ocorrido nos Estados Unidos, em 1969). Mas, simbolicamente, a partir desses anos rebeldes "iniciou-se" um processo de profundas mudanças no comportamento sexual das mulheres.

Notemos, por exemplo, o caso dos anticoncepcionais modernos (figura importante nesse contexto). A pílula apareceu como uma «ferramenta definitiva para iniciar a liberação das mulheres». O seu uso maciço permitiu a mulher separar «o desejo sexual da vida familiar», ou seja,  fazer amor sem o risco de engravidar. Isso, parece-nos, de uma importância fundamental para se compreender esse processo.

Podemos ainda levar em consideração o pensamento de Alain Corbin, para quem o mundo viveu entre a pílula e a aids, os trinta anos gloriosos (Trente Gloriuses) da sexualidade. O direito ao prazer associado à liberdade de não procriar – espécie de um "não" ao "multiplicai-vos" (Corbin).


Célebre à época a discussão sobre o pensamento da francesa Simone de Beauvoir (e seu polêmico livro O segundo sexo). Uma das maiores expressões intelectuais do feminismo ocidental, casada com o filósofo Jean Paul Sartre, com o qual mantinha uma espécie de "casamento aberto".

Beauvoir faria críticas contundentes às diferenças existentes nas relações de gêneros (entre homens e mulheres), em especial no tocante à liberdade sexual, incluindo-se o casamento, por ela considerado um “verdadeiro cárcere para a mulher”.

É sua a famosa frase: "não se nasce mulher, torna-se mulher"- crítica a um modelo de mulher ocidental, construido culturalmente, mas imposto à mulher como se fosse um desenho natural (ou divino).


Esses ares de liberdade sexual, soprados desde a década de 60, parecem influenciar o comportamento atual, não obstante, o surgimento de movimentos de (re)valorização de comportamentos (no sentido de valores)  considerados conservadores.

Associemos a tudo isso um mundo onde o culto ao prazer (o hedonismo pós-moderno) é bastante estimulado, impulsionado por um nítido desejo de consumo (vejam os shopping centers), inclusive em forma de satisfação sexual.

Agora, juntemos a tudo isso: 1) o direito (ou quase obrigação) ao prazer sexual; 2) a prática de uma liberdade sexual cada vez mais vanguardista, olhem, por exemplo, o que acontece nas festas de rua, onde quase tudo é permitido - nossos carnavais sem máscaras são talvez mais ousados que as antigas (e novas) festas privadas dos carnavais venezianos; 3) as possibilidades criadas no silêncio da noite (ou do dia) pela internet e suas redes virtuais; 4) o crescente culto ao corpo e seu narcisismo inconfundível; 5) e a independência financeira vivida em algumas classes sociais.


Forma-se, assim, um quadro onde o conceito de fidelidade pode se “relativizar”, como bem indicou as pesquisas. Isso do ponto de vista de fenômeno social e não sob o enfoque psicológico. E ressalvemos: estamos discutindo o fenômeno social infidelidade e não fazendo julgamento de valores (de mérito) ou justificando uma ou outra corrente de pensamento ou de comportamentos, pelo menos assim o pretendemos.

Há quem diga, como o antropólogo Roberto Albergaria, que “a traição chegou a um ponto que perdeu o charme transgressivo à medida que se generalizou”. Ou como historiador francês Gèrard Vicent, talvez exagerando, para quem está surgindo uma espécie de monogamia flexível como modelo para os casamentos de nossa era. Mas não sejamos tão radicais assim.
Do ponto de vista religioso, é importante frisar: tais perspectivas comportamentais cria uma zona de ruptura cultural intensa entre a moral sexual mais laica e a religiosa (em particular, com o catolicismo).
Há também uma boa discussão sobre a questão da culpa (não a travaremos agora, mas ela é importante e tem muito haver com o cristianismo, em particular com a tradição católica)

Mas voltemos um pouco à questão do hedonismo pós-moderno (o culto ao prazer de nossos dias).

O filósofo contemporâneo Michel Maffesoli defende a tese de que vivemos os tempos de retorno de Dionísio, deus do vinho, em contraponto ao deus Apolo (relacionado à moral, ao controle de si). Não esqueçamos que os cortejos dionisíacos são marcados pela presença de mulheres, em êxtase, segurando plantas.


Nesse efervescente clima de desconstrução e transformações de valores surgem questões que não podem passar despercebidas, até porque impactam diretamente a questão da moral sexual. e da (in)fidelidade.


Uma delas é a inversão do processo repressivo, ou seja, ao invés de se tentar conter a sexualidade e o prazer (típico da era burguesa e da moral sexual pregada pela Igreja), instaura-se uma espécie "obrigação" de se ter prazer, de buscá-lo a todo custo (extremos de consolidam).

Além disso, percebemos a consolidação de um conceito estético de beleza, no sentido de consumo e objeto erótico (o que é pior) que escraviza a mulher. Pois, sua massificação termina por elaborar um modelo ideal inantigível à grande maioria (como todo ideal), bem diferente dos anseios das lutas feministas das décadas de 60 e 70.

Bem nos representa essa simbologia estética a brasileira: Gisele Bundchen - um ícone de beleza da pós-modernidade, mas uma beleza perece-nos distante do mundo real. O que não deixa de causar um certo sofrimento numa gama de mulheres que não atendem essa padrão idealizado. 


No fundo, assistimos à generalização das atividades físicas de maneira a preparar o corpo para ser mostrado (como objeto de culto hedonista), a despeito de falarmos em geração saúde. A intenção é estarmos com o corpo sexualmente atrativo.

Queira ou não, uma alteração radical na maneira de se perceber e lidar com o corpo, sem o "pudor" e a "vergonha" de outros tempos na esfera pública (ex. os biquínis e o top-less de muitas praias ).

É bom lembrar que a figura da Virgem Maria chegou a ser concebida como um «padrão de beleza para o Ocidente, (por ser "pura") como Vênus teria sido para a antiguidade greco-latina». Miguel Ângelo faz essa exaltação em sua obra prima La pietta, um retrato fiel dessa relação: puríssima e bela (Gilbert Durand).
Nesse contexto, forma-se uma configuração de tensão inevitável com a igreja católica, uma situação potencializada pelo conservadorismo do último papado (João Paulo II) e do seu sucessor, Bento XVI. Ainda não se pode falar do novo Papa.

Alguns vislumbram o mundo se dirigindo para um lado e a Igreja em sentido contrário. Não poderíamos concordar plenamente com a afirmação, pois existem correntes progressistas dentro do catolicismo, além disso, nessa questão não é raro encontrarmos discursos e comportamento dicotômicos.

Quanto à infidelidade propriamente dita, a doutrina moral da igreja católica é enfática sobre o assunto. Vale citarmos a Encíclica Papal: Humanae Vitae de Paulo Vi (1968), ao falar do amor e da fidelidade na relação conjugal: (...) «É ainda, amor fiel e exclusivo, até à morte (...). Fidelidade que por vezes pode ser difícil; mas que é sempre nobre e meritória, ninguém o pode negar. (...) ».

Vejam o distanciamento dessa posição com relação ao discurso observado na nossa pesquisa.

E outras pesquisam apontam números parecidos com a nossa. Por exemplo, a pesquisa denominada Mudanças nos papéis de gênero, sexualidade e conjugalidade nas camadas médias urbanas do Rio de Janeiro, coordenada pela antropóloga Mirian Goldenberg, verificou, em um total de 166 mulheres pertencentes à camada média urbana carioca, 54,3% haviam sido infiéis.

Verificou-se ainda na pesquisa referida pesquisa que abaixo de 30 anos o percentual de infidelidade feminina é maior do que a média, chegando a 60% em mulheres com até 20 anos.

Confirma essa percepção, a respeito da infidelidade feminina, o sociólogo Antony Giddens, segundo o qual: «La proporción de mujeres casadas durante más de cinco años que han tenido aventuras sexuales extramaritales es hoy virtualmente la misma que la de los hombres ».

Bem diferente, o resultado com as mulheres católicas carismáticas, para as quais 88,00% afirmam ser a fidelidade primordial numa relação, sem possibilidades de flexibilização. Em comunhão com a opinião oficial da igreja sobre a matéria.

Como se vê há uma dicotomia evidente entre a moral sexual pós-moderna presente nos discursos de mulheres ligadas diretamente a Igreja e as mulheres mais laicas (ou seja, mais distanciadas dessa tradição religiosa).

(Fizemos uma nova edição do texto, inserindo novos comentários que achamos hoje devidos)...

Texto baseado na Dissertação de Mestrado de André Agra, na Pós-graduação de Ciências das Religiões (UFPB). As discussões e dados mais completos da pesquisa sairão no Livro Moral Sexual: as mulheres pós-modernas no “Confessionário” (a ser lançado em breve).


terça-feira, 2 de março de 2010

O kite surf e o windsurf: o prazer de voar...



A nossa proposta de discussão pretende nos levar a uma espécie de reinado da imaginação. Nesse sentido, tentaremos compreender, um pouco que seja, essa paixão contagiante e inesgotável que é velejar de kitesurf e windsurf (ou mesmo de outras embarcações à vela; não esqueçamos os argonautas).

Pergunta-se: o que estaria por trás desse despertar de tantas emoções e experiências fascinantes pela quais os praticantes desses esportes são cotidianamente tomados?

Para tentar nos aproximar melhor do tema, escolhemos três aspectos sintomáticos desses esportes, bem destacáveis e comuns, os quais nos servirão de base para iniciarmos a nossa conversa (que não se esgotará nesse breve bate-papo). Mas vamos em frente:


foto site kitesurf floripa

1) Poder contagiante do esporte: a coisa é tão forte que, como dizem, depois que o "gosto pega", nada surpreende o esforço de cada um em ir ao mar e zarpar em seu conjunto encantado.

Nesse sentido, não é incomum se observar praticantes buscando se "afastar" (ou com uma imensa vontade de fazê-lo) de sua vida cotidiana, inclusive no horário de seus afazeres (ex. quantos não olham da janela do escritório às árvores para verificar se o vento dá, morrendo de vontade de cair na água). E não critiquem precipitadamente, pois os mais responsáveis caem à tentação num piscar de olhos.

2) Emoções compartilhadas : vejam uma roda de kitesurfista ou windsurfistas conversando. Para quem não é do ramo muitas vezes a conversa pode se tornar até enfadonha. Mas para quem está realmente envolvido, somos tomado (ou sugado) por uma espécie de rede de afetos, de compartilhamentos e de emoções irresistíveis - algo típico das tribos contemporâneas.

3) Efeito tranquilizador (da mente, do espírito): convém ainda citar o efeito entorpecente do velejo (e do pós-velejo), parece que o corpo e a mente descansam de nossa vida "real". Como se tivéssemos entrado numa esfera de interação com um cosmo de extremo prazer.

Falemos, então, a partir desses três "sintomas" dos velejadores.

Pois bem. Primeiramente, é bom não se desprezar que o kite surf e o windsurf, como muitos outros esportes de vela, nos permitem vivenciar o antigo sonho de voar, de ascender ao alto.

Deslizamos nas ondas em voo razante, deixando na água cristalina um rastro de indescritível coloração. E mais: de repente, alçamo-nos rumo aos céus (o sonho de Ícaro), desafiando a gravidade com o auxílio das asas (dos equipamentos) e do sopro de Éolo (deus do vento) ou para o hinduísmo, Vayu ("o sopro da vida").


Por isso, para lidar com as imagens criadas num simples velejo (imagens poéticas, diríamos), nos seduz trilhar por um caminho distanciado das explicações meramente racionais. É difícil examinar os quatro sintomas citados sob um ponto de vista estritamente lógico.

Pois essa perspectiva (lógica-racional) não é, ao nosso ver, suficiente para abarcar o fenômeno (velejar) na sua integralidade. Em função desse pressuposto, escolhemos tentar nos aproximar desse fenômeno pela via do imaginário.

Mas o que queremos dizer com via do imaginário. Grosso modo, é tentarmos compreender o fenômeno velejar sob a ótica de esquemas de imagens primitivas que estruturam o pensamento e precedem nossas ideias e emoções (ex. não nascemos com a mente totalmente limpa, acredito).

Expliquemos melhor. Ao velejarmos (kite e wind), tanto do ponto de vista da atitute como da estética envolvida nos deparamos com um conjunto de imagens variadas. Podemos citar algumas: o mar, a força do vento na água, nas velas, o céu, o desenho dos equipamentos (percebam a semelhança da vela do wind com uma asa ou de algumas pipas com um passáro), e muito mais. Prestem atenção nesse aspecto: pois essas imagens são referências de mitos muito antigos.

A teoria do imaginário demonstra que esse conjunto de imagens nos faz reviver antigas experiências da humanidade, experiências marcantes, por sinal. Por isso, foram transformados em epopeias, contos, lendas.

Muitas delas, inclusive, fartamente presentes em mitos formadores da civilização ocidental e outras que nos precederam, ou seja, são constelações de imagens inerentes ao nosso mais profundo reservatório imaginativo, de onde nascem muitas crenças e experiência místicas.

Enfatizemos esse ponto (é necessário): imagens arquetípicas, melhor dizendo: imagens primordiais advindas de tempos distantes que pouco a pouco foram se firmando numa espécie de consciência coletiva da humanidade. E que despertaram nos nossos antepassados (e despertam em nós) desde sentimentos de espanto e medo, admiração, sensação de transcendência até desafios aos inúmeros feitos heroicos de que temos notícia.

Vejam que as asas aparecem como atributos de muitos deuses e personagens mitológicos. Em Eros (deus do amor), nos anjos, em Ísis (na mitologia egípcia), no capacete de Thor (mitologia nórdica), nos pés de Hermes, em Perseu ...... paremos para não ficar cansativa a citação.

Mas voltemos à nossa trilha. Para os pensadores da teoria do imaginário , o salto rumo ao alto (como se faz no kite e no wind)é um gesto (ou uma fantasia) de potência, de transcendência, de purificação. Uma espécie de libertação do mundo em que vivemos.

Vários outros símbolos lhes são correlatos: as escadas; o "xamã estende as mãos como um pássaro abre asas"; o subir as montanhas, as pirâmides apontando para o céu; as colunas das catedrais góticas; os minaretes das mesquitas islâmicas; todos se voltam para o alto.

A ascensão ao céu por uma escada é conhecida no antigo Egito, na África, na Oceania e na América do Norte. Ascensão que pode ser feita por uma montanha (símbolo da divindade celeste suprema), por uma árvore (o carvalho inclusive é símbolo de Júpiter), pelo arco-íris (como no Havaí).


Dante, na Divina Comédia, fala "de uma escada de ouro para se chegar ao último céu". São João da Cruz e a sua subida mística ao Monte Carmelo; "Jacó sonha com uma escada cujo topo atinge o Céu", ou seja, há uma farta miríade de mitos de sacralização da subida aos céus.

Vejam que estamos tentando demonstrar a mitificação que envolve o elevar-se aos céus, uma imagem que abarca, nos parece, a vontade de subir (voar) vivenciada no kitesurf e no windsurf às regiões superiores saturadas de sagrado, de valores mítico-religiosos



Por isso a importância de focarmos em símbolos como nas asas (a pipa e a vela podem ser consideradas, sob nosso ângulo de visão, verdadeiras asas). Há pipas inclusive que tentam imitar o formato de pássaros. Não esqueçamos a fênix (da mitologia egípcia e grega)ou a águia (símbolo dos romanos e dos americanos, dois povos, duas potências imperialistas); na mitologia hinduista temos o rei dos pássaros, Garuda.

Outra estrutura imagética importante é a água. Quem não se impressiona com o prateado do mar. O espelho que se forma na superfície da água no qual flutuamos (voamos) com nossas pranchas. Notem que esse prateado ou dourado da água são representativos de lugares celestes, pelo menos na visão de muitas religiões e culturas, as mais distintas.

Experimentem velejar ao final da tarde e percebam a superfície do mar em sua volta, dá uma sensação de contato com algo transcendente, com algo celestial. E o velejo para muitos horizontal não esconde sua intenção de planar, de ascender.

Por outro lado, é preciso adequar-se ao ambiente. A mansidão do mar é passageira e os ventos são enganosos. Num caso e no outro, temos que conciliar as ondas (animação mais íntima das águas), com o vento e as asas (o equipamento). E tudo isso em harmonia com o nosso corpo e seus movimentos.

Talvez fosse mais adequado falarmos em termos de cativar e negociar com a natureza (mar, ventos, fauna, flora marinha) para melhor traduzir o que seria velejar. Para alguns mais impetuosos (ou muito senhores de si) adotam uma postura de dominar o mar (o que também é um símbolo importante).


É bom notar que essa metáfora de domar o mar se assemelha tanto ao controlar os nossos instintos como ao controlar a fúria da natureza. Situações presentes em muitos feitos heroicos, de religiosos e guerreiros, bem nos exemplifica as figuras de Moisés, Netuno, Ulysses, Aquiles...

A água tem ainda toda uma relação com a emotividade e com um sentimento de pertencer a um todo orgânico. Não nos esquecamos que provavelmente viemos da água e que nosso primeiro berço e nossa paz primeira foi no útero, ambiente aquoso e misterioso, como o mar.

A aproximação do mar (como símbolo) ao útero materno é recorrente à psicanálise, bem como, nas mitologias clássicas, o é à ideia de fecundidade feminina.

Inúmeras são as divindades e seres relacionados ao mar: Iemanjá (mitologia africana); Netuno; as sereias; Varuna (mitologia Hindu); Jesus (caminhou sobre as águas, na mitologia cristã).

Não esqueçamos que o batismo é feito com (na) água, inclusive o de Jesus, por João Batista. Para o Cristianismo, o batismo tornou-se o principal instrumento de regeneração espiritual. A imersão na água simboliza o regresso, um novo nascimento.

Mas o ritual do banho também era praticado no culto das grandes deusas da fecundidade e da agricultura. Os sacerdotes védicos suplicavam: que as águas nos tragam o bem-estar.

Talvez, seja essa interação com esses sonhos e êxtases antigos que nos façam amar tanto o velejo....Pois nos conectamos com a memória da humanidade no que há de mais sagrado e perene.

Continuaremos com essa nossa viagem em outra momento..., mas antes de terminarmos, escutemos Fernando Pessoa:

Nas asas do tempo, a tristeza voa


Refer. básc. (Gilbert Durand, Michel Maffesoli, Mircea Eliade)

segunda-feira, 1 de março de 2010

Roma antiga, a moral sexual e o cristianismo

Iniciaremos uma discussão a partir desse texto (outros se seguirão) a respeito da moral sexual, da mulher e do catolicismo, mas especificamente a influência da religiosidade de tradição católica na moral sexual da mulher pós-moderna.

Nossa jornada se inicia na Antiguidade. Expliquemos: A construção da moral sexual (referência à mulher ocidental) foi muito influenciada pelo cristianismo, especialmente pelo pensamento de S. Agostinho e de S. Tomas de Aquino. Mas, além disso, a moral cristã e seus pensadores receberam contribuições importantes do paganismo (inclusive dos seus mitos) e do helenismo (princialmente das correntes filosóficas do mundo greco-romano).

Como exemplo, poderíamos citar: o estoicismo (muito associado à austeridade, ao controle de si) e o neoplatonismo (relac. à idealização e a dualidade corpo/espírito). Plotino, um dos principais pensadores neoplatônicos, nutria uma verdadeira ojeriza ao corpo, para ele uma fonte do mal. Uma visão de certa forma assimilada pelo cristianismo.

Por isso, a necessidade de voltarmos no tempo. Pois sem esse passado é difícil compreender a realidade da moral sexual hoje vivenciada, por mais incrível que pareça.

Pois bem. Nosso primeiro tema é discutir um pouco uma impressão bastante difundida de uma Roma na qual o prazer sexual era desenfreado e generalizado. Essa é uma tese usado por muito tempo por pensadores cristãos.

Para eles, haveria em Roma uma liberalidade e licenciosidade generalizada de comportamentos, como se o Império Romano tivesse sido uma grande Sodoma e Gomorra.

Lot
Essa, inclusive, é a nossa primeira consideração. Baseado na opinião de muitos historiadores que se preocuparam em estudar a vida privada dos romanos (Obra ref. A história da Vida Privada), haveria uma estratificação social bem caracterizada e os comportamentos dos romanos não eram uniformes, ou seja, nem todos eram libertinos (uma conclusão sem nunhum tipo de julgamento moralista).

Portanto, seria supostamente equivocado generalizar-se o comportamento sexual dos romanos. O que não significa dizer que em Roma não se celebrava a vida e o prazer. Isso era bem evidente nas saturnais, espécie de carnaval romano, e nos famosos cultos a Baco, deus do vinho e das orgias (bacanal, inclusive, deriva da palavra bacante, seguidoras de Baco).

Quando, por exemplo, o historiador Paul Veyne equipara a liberdade de costumes da aristocracia romana e de algumas de suas damas à do século XVIII, devemos ressalvar que essa mesma liberdade não seria observada amplamente nas camadas mais pobres de Roma. E mesmo nas altas classes romanas havia aristocratas austeros quando se tratava de conduta sexual (ex. Marcos Aurélio).

Ora, não podemos cair na tentação de imaginarmos toda dama romana como uma Messalina (um ícone da sexualidade desenfreada de Roma) nem todo imperador um Calígula. Além do mais, a austeridade estoica tinha sua permeabilidade nas classes altas romanas, o que configura um indicativo da presença de controle sexual.

A consagrada teóloga Uta Ranke nos chamaria atenção para esse exagero, segundo a qual se imaginaria Roma um grande templo de homens e mulheres a se deliciarem com os prazeres da vida, inclusive os do corpo. Uma versão distorcida que induziria a se pensar o cristianismo como um precursor do autocontrole e do ascetismo no mundo pagão.


Aqui cabe mais uma ressalva. Quando se aborda a questão do pessimismo sexual existente na Antiguidade, é bom lembrarmos que essa noção não derivaria do conceito de pecado ou de punição, mas, em geral, de aconselhamentos (médicos) no tocante à abstinência sexual, à virgindade e à fuga do prazer excessivo, como bem nos argumenta Michel Foucault.

Outro tema importante é o famoso padrão de dupla-moral (uma moral para os homens e outra para as mulheres) herdado do helenismo e arraigado na cultura pagã, a despeito de algumas conquistas das mulheres romanas (para alguns historiadores as primeiras feministas).

No próprio discurso médico podemos encontrar resquícios de uma distinção profunda dessa dupla-moral. Celso e Rufo de Éfeso, médicos famosos da sociedade romana, discerniam a epilepsia como uma doença autocurável, bastava se chegar a puberdade para se realizar a cura.

Nas meninas, ela se daria com a primeira menarca (menstruação). E os meninos, quando fizessem amor pela primeira vez. Em resumo, a puberdade estaria associada à iniciação sexual para os meninos ao passo que para as meninas a «virgindade continuaria sacrossanta» (Paul Veyne)).

Diria-nos Michele Perrot «Roma, pagã ou cristã, exigiria a virgindade das raparigas (moças), e celebraria o pudor e a castidade das mulheres», ou seja, a cultura pagã também valorizaria a contenção sexual das mulheres e a virgindade.

Ao contrário, a situação dos meninos seria bem diferente, pois eles gozariam de indulgência para aproveitarem a vida, em particular, entre o surgimento da puberdade e o casamento. Cícero e Juvenal, «moralistas severos», e o imperador Cláudio (cônjuge de Messalina), admitiam a necessidade de se «conceder calor à juventude».

Segundo ainda o historiador francês: «Durante cinco ou dez anos, o jovem frequentava prostitutas, tomava amantes; e comum, um grupo de adolescentes, forçar a porta de uma mulher da vida para uma violação coletiva».

No fundo, a virilidade, a força e o gládio impondo a violência à mulher.

Quanto ao casamento em si, para os romanos um fato adstrito, em geral, à esfera do particular (do privado) e uma instituição relacionada mais a um «dever cívico» com fins de procriação. Haveria ainda a perspectiva de se adotar o casamento monogâmico (com raízes estoicas), na visão de Michel Foucault, uma exigência não presente no mundo romano mais antigo - pelos menos com tanta contundência .

Por outro lado, no contexto da moral do primeiro século, a mulher seria percebida como uma companheira, e não um mero objeto patrimonial do marido, não obstante, ser comum considerá-la de inferioridade natural (uma visão herdada do aristotelismo e incorporada por muito tempo pelo pensamento misógino de muitos pensadores cristãos).

Por isso, quando o romano preconizava o respeito do marido pela esposa seria mais no sentido de como deve se portar um verdadeiro chefe, ao respeitar «seus auxiliares devotados, que são seus amigos inferiores». Nesses termos, as romanas poderiam até ser mais valorizadas que as gregas, mas ainda sim, seriam consideradas como diria Aristóteles: “um ser de segunda ordem ".

Sobre a infidelidade feminina (da esposa), a moral romana não condenaria o fato por si só, i. é, o ato não significaria um «amor traído». Mas a condenação no sentido do esposo - seu senhor absoluto, como o seria dos filhos e dos domésticos - não a ter vigiado adequadamente.

Portanto, para Peter Brown, o adultério em nada afetaria a posição pública do marido. Nessa linha, Veyne nos diria:« (...) a infidelidade feminina não constitui um ridículo para o marido, mas uma desgraça por demonstrar sua falta de vigilância ou de firmeza por deixar o adultério florescer na cidade».

Seria uma questão, assim nos parece, mas de aparência e demonstração de boa governança do esposo do que de sentimentalidade pela atitude da companheira. Em decorrência disso e considerando-se que os maridos iludidos seriam mais ultrajados do que ridicularizados, haveria nas classes altas uma incidência elevada de divórcios; «César, Cícero, Ovídio, Cláudio, por exemplo, teriam casado três vezes».

Quanto à possibilidade usual da prática do divórcio, sob os auspícios do direito, por exemplo, bastaria para mulher como para o marido se afastarem com essa intenção e a informalidade consagraria o ato. Não seria sequer necessário prevenir o ex-cônjuge, e teria ocorrido casos em Roma de maridos divorciados de sua única esposa sem o saberem.

Outra característica ponderável da moral sexual praticada nesses tempos seria a tentativa de levar a castidade aos esposos, uma moral conjugal com afinidades com o estoicismo e presente no ideário cristão. Marcos Aurélio – imperador estoico - diria ser o adultério do marido tão grave quanto o da mulher, «ao contrário da velha moral que julgava as falhas não segundo o ideal moral, e sim de acordo com a realidade cívica, na qual se inscrevia o privilégio dos machos».

Entretanto, é de se levar em conta que uma moral não se restringe ao que se prega, ao dever ser, mas, sobretudo, a assimilação e prática dessas regras no cotidiano das pessoas. Nesse sentido, essa moral conjugal pregada pelos estoicos e pelo cristianismo, com algumas similitudes notáveis, não se realizaria de forma importante na sociedade, em especial, quando atentasse contra a força patriarcal de ares quase inquebrantável.

É importante ressaltarmos que os soberanos romanos, diria Maurice Pinguet, diferentemente de seus homólogos chineses e japoneses, não teriam o «velho hábito confuciano de medir o poder em proporção à ordem moral».

Claro que haveria exceções, entre elas: Augustos, Domiciano, Severo e o próprio Constantino. Estes imperadores teriam tentado corrigir os costumes por meio de decretos. Domiciano, por exemplo, teria mandado ainda enterrar viva uma vestal que descumprira seu voto de castidade, e proibira os poetas satíricos de usar termos obscenos. As vestais eram sacerdotisas virgens (deusa romana Vesta ou Héstia) as quais mantinham aceso o fogo sagrado - símbolo da verdadeira alma de Roma.

Severo, de outro modo, faria «do adultério do marido um delito e do aborto um crime contra o esposo e a pátria»; a legislação de Constantino substituiria «por um rigorismo mais popular que verdadeiramente cristão o velho laxismo aristocrático».

Todavia, essas tentativas sempre deixariam de ser aplicadas e seriam esquecidas no reinado seguinte; somente a de Constantino se conservaria e marcaria a Idade Média. Como podemos perceber, a sociedade romana viveria, grosso modo, entre o prazer e a contenção, a depender do governo, das circunstâncias e da classe social.

Ora, do mesmo jeito que se cultuaria a figura de Baco ou de afrodite, esculturas como as de Apolo e Hércules também seriam exaltadas. No fundo, elas seriam chaves de compreensão do comportamento dos romanos.

A primeira relacionada às delícias da vida. As outras à força, ao controle, à razão. O próprio ideal apolíneo seria feito de autocensura. Todavia, algo bem diferente de ameaçar-se alguém com a condenação eterna. Em resumo, poderíamos dizer: haveria regras a serem seguidas e interdições a serem respeitadas mesmo nas situações de luxúria deflagrada.

Curioso que os romanos reconheciam nessa época, por exemplo, um libertino quando este fazia amor antes do cair da noite (exceto os recém-casados); «fazer amor sem criar penumbra»; ou despirem-se todas as vestes de sua parceira. Só as prostitutas amavam sem sutiã. Já nas pinturas dos bordéis de Pompéia, as damas da noite conservariam esse último véu, como um sinal de distinção.

Oportuno enfatizarmos a necessidade da mulher estar sempre a servir ao homem e se posicionar de forma passiva. Ser ativo «seria uma atitude do macho».

Com efeito, haveria duas infâmias supremas para os romanos: uma seria o macho ser servil a ponto de levar a boca a serviço da mulher, a outra seria um homem livre ser passivo numa relação sexual, ou seja, deixar-se possuir. Assim, um cidadão romano poderia ter relações com outros homens, inclusive com seus escravos, ou mesmo com meninos (pederastia), desde que se comportasse como ativo.

Parece-nos evidente, todavia, a ocorrência de contínuas mudanças. A Antiguidade Tardia, por exemplo, segundo o historiador Peter Brown, em quatro séculos, entre os reinados de Marcos Aurélio (161-180) e o de Justiniano (527-565), assistiria uma série de mudanças profundas «que afetariam os ritmos de vida e as sensibilidades morais».

As classes superiores, por seu lado, procurariam diferenciar-se das mais inferiores por sua cultura e vida moral, entre outros, como se quisessem criar uma distância social através do seu código de conduta moral. Mesmo o amor homossexual não seria tão diferenciado do amor heterossexual; pois o prazer sexual, enquanto tal, não colocaria nenhum problema para o moralista da classe superior.

Todavia, «o medo da efeminização e da dependência emocional», esse sim, importaria e fundamentaria a necessidade de se «manter a imagem pública de um homem realmente integrado à classe superior», pois não estaria em jogo o escrúpulo relativo à sexualidade em si, mas uma condição que pudesse sugerir inferioridade, dependência. Tudo isso determinaria “o código moral e a vida sexual da maioria dos notáveis de Roma”.

Quanto à mulher, é emblemático o caso de Teodora, a esposa juvenil de Justiniano e uma ex-dançarina de strep-tease do Teatro Público de Constantinopla. Tratava-se de uma mulher do povo, e as restrições morais dos códigos das classes superiores não lhe diziam respeito. Sob todos os aspectos, Teodora, em sua época, poderia ser considerada a ‘antítese das respeitáveis mulheres casadas da classe superior’, bem nos ensina Peter Brown.

É de se comentar a questão relativa à nudez feminina e sua relação com o pudor, um atributo que se fará presente em toda história do cristianismo, em especial na sua tradição católica. Sob esse prisma, se haveria, por um lado, uma indiferença, grosso modo, com relação à nudez na vida pública romana, não era de se desprezar a vergonha social de uma mulher de se exibir em público de «modo inconveniente».

Sintomático à época a indiferença com a nudez das damas diante dos escravos, pois moralmente essa presença seria tão insignificante quanto está diante de um animal ou um objeto (Servus est res (servo és coisa).

Continuaremos....

Obras ref.: História da Vida Privada, volumes I,II,III, IV e V; O pecado e o medo no Ocidente; Eunucos pelo Reino de Deus (e outras).

Trecho adaptado do livro: Moral sexual: a mulher pós-moderna no confessionário, a ser publicado em breve por André Agra.