quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

O "campo religioso" e o "sincretismo brasileiro".


Ao se tentar compreender o campo religioso brasileiro na contemporaneidade, é de bom alvitre primeiramente observar a genealogia do processo de colonização e desenvolvimento do Brasil. Pois possivelmente seria a partir dessas raízes históricas que melhor se poderia vislumbrar a instauração do sincretismo religioso nacional, característica de um povo miscigenado, dentro de um processo de "interligação" entre etnias e culturas aparentemente distintas.



Melhor dizendo: um encontro de universos simbólicos diferentes, nos termos usados por Pierre Sanchis.

E nesse encontro de universos simbólicos bastante diferenciados, ao que parece, teriam sido construídas as relações com o transcendente de um modo particular. Nesse sentido, é notável a flexibilidade do brasileiro em se amoldar a credos e crenças, os mais variados.

Sob essa ótica, segundo Maffezoli, o Brasil seria um exemplo típico de país pós-moderno no sentido de uma religiosidade sem purismos. Ou como diria Sanchis, uma religiosidade na qual não se percebe a unidade, nem pluralidade pura, mas pluralismos, sob a forma de um sincretismo.

Ora, desde o desembarque na “terra brasilis”, no século XVI, Portugal teria buscado fazer de sua colônia uma terra Católica, por isso, suas ações no campo político, cultural e social traziam em seu arcabouço ares dessa tendência religiosa, que se digladiava com o protestantismo desencadeado por Lutero.


Nessas circunstâncias, a contra-reforma era-lhe marca indissociável e implacável da aventura portuguesa à época do descobrimento. Rechaçando tudo que porventura se aproximasse da visão luterana. E, por outro lado, adotando uma postura moral mais rígida e extremada com relação ao laxismo dos valores renascentistas. Em especial em Roma. Trento, pois, impõe-se como baluarte imperioso da moral.
Denota-se, com efeito, a tentativa de introduzir nas “novas terras” um catolicismo “puro”, tentativa essa malograda. Não obstante reconhecer-se que a ação pastoral “romanizada” tenha deixado sulcos profundos, eventualmente de caráter anti-sincrético explícito, na sensibilidade popular .

Na realidade, houve uma interação do cristianismo romano com a espiritualidade indígena, e mais tarde uma forte influência da religiosidade africana, não renegando, dentro desse processo histórico, a aceitação posterior do espiritismo, e do próprio protestantismo, como componentes formadores desse caldo religioso-cultural.

Não se pode esquecer, entretanto, que especialmente a religiosidade africana entraria no contexto religioso brasileiro sob uma perspectiva de religião de segunda ordem, inferior ao catolicismo romano, como que distorcendo seus mitos fundantes. Exemplificativa ainda hoje, a figura de Exu e todo um processo de degradação imposto a essa figura mítica do panteão africano.

Entretanto, a miscigenação religiosa se imporia mais fortemente aos costumes “tupiniquins” do que a supostas intenções e “pureza” da Igreja. Sintomático o processo de acomodação promovido pelos jesuítas na catequese e a consagração posterior de um Catolicismo medieval, santeiro.


Não há como não deixar de ressaltar a “operação de violência simbólica contra as religiões afros” impetradas pelas Religiões institucionais no Brasil, e ainda presentes, de certa forma, no campo religioso, configurando uma postura de intolerância, elemento turvo e indesejável de nossa maleável religiosidade.


A despeito dessa violência, teria havido uma espécie de adaptação, em especial, do “catolicismo brasileiro“ aos cultos afros e vice-versa, mediante processo de combinação de entidades (ex: santos/orixás), não discutindo o propósito para tal aparente flexibilidade - se assim se possa chamar.


Do ponto de vista institucional/oficial, a relação se dera de maneira assimétrica e “desvantajosa” mitologicamente, para as religiões da África. Talvez, daí resida a motivação para o processo de. “desincretização” que passa o candomblé, uma tentativa de retorno e revalorização de suas origens.


Aliás, sobre o candomblé é patente ainda o grau de desinformação a respeito da construção de seus mitos e a representação de suas entidades, quase sempre confundidas e mal interpretadas.


Nesse esteio, haveria, hoje, em andamento uma tentativa de alguns movimentos de afrodescententes, dentro do Candomblé, de recuperação de seu passado mitológico – de seus mitos fundantes - buscando assim libertar-se de um sincretismo que de certa forma o tornou quase subserviente às religiões dominantes, em especial ao catolicismo.


Nesses moldes, a Umbanda seria assim uma espécie de religião brasileira paradigmática quanto ao processo sincrético - o “Sincretismo brasileiro”, “em que nunca se chega a uma verdade unificada” - no seu caldo, há aspectos da religião católica, dos cultos afros, do kardecismo e dos cultos indígenas.




Importante acentuar, hodiernamente, nos cultos pentecostais, em especial na Igreja Universal, mesmo de forma negativa, a ritualização de entidades do Candomblé (retorno ao demoníaco), como “Exu” e da “Pomba Gira” , transfigurados como demônios” de sorte a se reforçar a ligação dos fiéis aos seus templos, como se exagerassem o que considera o “mal”, a fim de valorizar sua capacidade de gerar a libertação dessas forças demoníacas e conduzi-los ao “bem”- Deus, ou seja, gera o medo para atrair para o “bem”.


Nesse sentido, no campo religioso brasileiro assiste-se um crescimento perceptível dos movimentos pentecostais e de outras denominações evangélicas, também aumento dos movimentos católicos “carismáticos”, tantos estes quanto aqueles com similitudes quanto à intervenção do “espírito santo” e da remitologilação do demônio.


Um contraponto peremptório às concepções de desencantamento do mundo pregadas outrora, e sob essa visão, o mundo ao invés de desencantar viveria um processo de valorização do sagrado.


Ressalta-se ainda a influência da ideologia inerente à “Teologia da Libertação”, reforçados pelo Concílio Vaticano II, a persistir nos movimentos de base da Igreja Católica, talvez sem tanta força como dantes, principalmente em razão da campanha contrária empreendida pelo último papado.


Para Comblin, a eclesiologia do Vaticano II quis ser uma reação radical contra essas eclesiologias que esquecem completamente a realidade humana e tratam os seres humanos como se fossem objetos nas mãos de um poder hierárquico quase divinizado , ou seja, pode-se apreender os conceitos dessa teologia num sentido de uma mitologização da Igreja como uma instituição voltada realmente para os pobres.


Outra questão importante diz respeito ao surgimento de movimentos religiosos, periféricos às instituições ou até fora delas, e ao lado da pressão crescente em direção a uma racionalização modernizadora,. E dos quais é difícil dizer se os caracteriza o tipo conservador de sincretismo tradicional ou o reencontro com ele através das desarticulações pós-moderrna .


Uma constelação plurivalente como a da Nova Era, o Esoterismo, espécies de religião sem religião, sem dogmas, culto e sistema de crença, apropriando-se de elementos de tradições culturais antagônicas (oriental, hindu, indígena...), associadas ao modelo sincrético pós-moderno e que avançam cada vez mais no contexto nacional, facilitados naturalmente pelo perfil religioso do Brasil de permeabilidade de expressões religiosas diferentes.


Nesse contexto, e considerando a época de “religião institucional forte” instaurada num tipo de pluralismo detectável na modernidade contemporânea, permite-se reconhecer no campo religioso brasileiro, potencialmente sincrético, a instauração de um novo processo de definição de identidade, algo que vai além do contexto religioso institucional ou sob seu domínio.


Por isso, as instituições religiosas estariam desafiadas a se engajarem na construção de uma nova sociedade, compatibilizando os movimentos periféricos e os centrais, deixando fluir e se permear o contexto ideológico-religioso com essas novas formas de expressão, contribuindo, dessa maneira, na construção identitária nacional – o que seria uma prova, essa sim, do pós-modernismo do Brasil.


Ante esse quadro, hoje, o campo religioso não pode ser considerado mais simplesmente o campo das religiões. Extrapolam-se os muros das Igrejas, como se a cultura chamasse às ruas o sentimento religioso, as crenças, suas mitologias para formar um caldo social na elaboração de nova(s) identidade(s) coletiva(s).

Nesse sentido, é notável perceber-se que o papel das instituições religiosas pode ser fundamental no equacionamento pacífico do questionamento contemporâneo das identidades.

Até porque não se pode esconder um certo nível de conflito em gestação no Brasil hodierno com relação às denominações religiosas - claro que à moda brasileira – mas mesmo assim situações essas que devem ser a todo custo inibidas.

Enfim, parece oportuno se indagar se instituições conservadoras como a Igreja Católica - com a maioria dos fiéis no Brasil - conseguiria atuar com sucesso (no sentido de promover a coesão social) nesse momento cultural de construção de valores. Considerando-se sua postura de rigidez demonstrada pela papado anterior e de certa forma pelo atual, em especial no tocante à moral sexual e a sua visão mais conservadora e menos revolucionária num mundo assimétrico e injusto como o nosso.

2 comentários:

  1. Muito boa essa sua viagem pelos mitos para interpretar o velejo (deu vontade de fazer kite), parabéns.


    Renata

    ResponderExcluir
  2. Giorgia disse : BONITO DEMAIS !!!

    ResponderExcluir